Em audiência pública na Câmara dos Deputados, o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, negou que o Brasil tenha vivido uma ditadura militar entre 1964 e 1985. O general adotou tom cauteloso diante da escalada de tensão dos últimos dias entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal e procurou amenizar declarações do presidente Jair Bolsonaro de que as Forças Armadas têm papel de “poder moderador” em eventual crise.
Após o Estadão ter revelado que o Braga Netto ameaçou, em julho, a realização das eleições de 2022, caso não houvesse voto impresso – adotando o mesmo discurso de Bolsonaro –, diante dos deputados nesta terça-feira, 17, ele tentou desvincular os militares de qualquer ideia de ruptura institucional.
“E não considero que houve uma ditadura (no Brasil). Houve um regime forte, isso eu concordo”, afirmou o ministro da Defesa. “Cometeram excessos dos dois lados, mas isso tem que ser analisado na época da história de Guerra Fria e tudo o mais. Não pegar uma coisa do passado e trazer para os dias de hoje. Se houvesse ditadura, talvez muitas pessoas não estariam aqui”.
A afirmação provocou protestos de deputados. “Como o senhor pode desrespeitar a memória das pessoas?”, criticou Fernanda Melchionna (RS) ao lembrar dos mortos pela ditadura.
Braga Netto se recusou a comentar o aviso feito por Bolsonaro no sábado, e repetido nesta terça-feira, de que pedirá o impeachment dos ministros do Supremo Luís Roberto Barroso, também presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e Alexandre de Moraes. Incentivados por Bolsonaro, apoiadores do governo programaram um ato contra o Judiciário no feriado de 7 de setembro. “Não haverá desfiles, exatamente em virtude da pandemia”, disse o general.
Em mais de uma ocasião, o ministro atuou como uma espécie de escudo de Bolsonaro e tentou abrandar o discurso sobre o “papel moderador” dos militares. “O País tem somente Três Poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, que têm de estar harmônicos e independentes. A Força Armada trabalha com o que está em cima do artigo 142 (da Constituição Federal). É isso, sem especulações e sem ilações”, declarou o general na sessão conjunta das comissões de Relações Exteriores, Fiscalização e Trabalho da Câmara.
O titular da Defesa disse, ainda, que não vinculou a realização das eleições de 2022 à aprovação do voto impressso. Em 22 de julho, o Estadão mostrou que no dia 8 daquele mês o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), recebeu duro recado de Braga Netto, por meio de importante interlocutor político. Na ocasião, o general pediu para comunicar, a quem interessasse, que não haveria eleições em 2022 sem aprovação do voto impresso, à época em tramitação na Câmara. A proposta foi rejeitada depois tanto na comissão especial que analisava o tema quanto no plenário da Casa.
“Reitero que não enviei ameaça alguma, não me comunico com presidente dos Poderes por intermédio de interlocutores. No mesmo dia, ainda pela manhã, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, confirmou publicamente que não houve esse episódio”, afirmou Braga Netto na audiência pública. “Considero esse assunto resolvido, esclarecido e encerrado.”
Apesar da declaração do general, Lira não negou o teor da reportagem. O presidente da Câmara disse apenas que as eleições de 2022 estão asseguradas. O Estadão mantém as informações publicadas.
Na primeira vez em que desmentiu a ameaça contra as eleições, Braga Netto fez questão de destacar, em nota, seu posicionamento favorável ao voto impresso. Na ocasião, o titular da Defesa levou as Forças Armadas para um assunto com o qual não deve ter nenhuma atuação ao reiterar o apoio ao “voto eletrônico auditável”, com comprovante impresso.
Nesta terça-feira, no entanto, o general disse que não daria opinião sobre voto impresso, embora tenha defendido mudanças nas urnas eletrônicas. “Eu não vou dizer se sou a favor ou não. Não estou aqui para emitir opiniões. Estou aqui para esclarecer as posições dadas pelas Forças Armadas”, respondeu Braga Netto, quando questionado sobre o assunto. “Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo, em todas as instâncias.”
Democracia Nas últimas semanas, o ministro vem acumulando declarações vistas como ataques à democracia. Em 7 de julho, por exemplo, um dia antes do recado que chegou a Lira, o Ministério da Defesa divulgou uma nota, assinada por Braga Netto e pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em repúdio ao presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, Omar Aziz (PSD-AM). Aziz havia dito que lamentava constatar na CPI o “lado podre” das Forças Armadas, envolvido em “falcatruas” dentro do governo. A Defesa respondeu, na ocasião, que as Forças Armadas não aceitariam “qualquer ataque leviano”.
A partir daí, a temperatura da crise subiu. Aliado do governo e líder do Centrão, Lira chegou a procurar Bolsonaro para dizer que não contasse com a Câmara para qualquer ato de ruptura institucional. Como mostrou o Estadão, o presidente da Câmara disse a Bolsonaro que iria com ele até o fim, com ou sem crise política, mesmo se fosse para perder a eleição, mas não admitiria golpe. À época, o presidente respondeu que não havia esse conversa.
Na prática, ao responder a perguntas de deputados das três comissões, Braga Netto acabou se contrapondo ao que disse nesta segunda-feira, 16, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno. O chefe do GSI observou, em entrevista à rádio Jovem Pan, que as Forças Armadas podem ter o “poder moderador” em momentos de crise.
“Acho que, para a opinião pública, pelo que ela tem se manifestado, há uma certa concordância sobre esse papel do Judiciário, que tem colocado as coisas numa tensão ainda maior. Mas não acredito numa intervenção no momento. Essa intervenção poderia acontecer num caso muito grave”, observou Heleno, numa referência à prisão do presidente do PTB, Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro.
Para reforçar o que disse, o ministro do GSI citou o artigo 142 da Constituição, o qual, na realidade, não faz menção ao poder moderador. Além disso, tampouco permite que um poder interfira em outro. Até o presidente do STF, Luiz Fux, já disse que o artigo citado por Bolsonaro e por ministros não dá poderes ao presidente de autorizar o uso das Forças Armadas contra o Legislativo ou o Judiciário.
O trecho da Constituição mencionado por Heleno diz que “as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
O mesmo artigo foi interpretado por Braga Netto de forma diferente. “É isso que as Forças Armadas fazem, nem por um lado, nem por outro. As Forças Armadas cumprem o que está previsto na Constituição”, disse o ministro da Defesa.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho ’03’, do presidente Jair Bolsonaro, permaneceu sem máscara durante a sessão. Mesmo após ser solicitado a usar a proteção contra o novo coronavírus, o deputado se recusou. A prática é recomendada para evitar a propagação de covid-19.