Por Agência O Globo – Os gritos estão em toda parte, o tempo todo, inclusive nos consultórios médicos. Elas servem para alertar sobre algo aterrorizante, assustar alguém, expressar felicidade ou alegria e também para liberar tensões e emoções negativas que se acumularam dentro de alguém.
Profissionais dedicados àsaúde mental costumam recomendar a pacientes que estão muito sobrecarregados ou desequilibrados emocionalmente que experimentem a terapia do grito – scream therapy, em inglês.
— Embora o ato seja libertador, pode não ser indicado para todos; alguns, quando estão muito angustiados, saem para dar um passeio, outros liberam a tensão através do esporte, outros gritam contra o travesseiro ou quando estão no chuveiro. Cada um encontra o recurso que mais o ajuda a descomprimir, — revela a psicóloga Victoria Almiroty.
Recentemente, esse tipo de terapia se popularizou devido aos altos níveis de exigência e movimento constante que caracterizam a sociedade moderna. Às vezes, viver em um mundo tão competitivo pode ser drenante e, em algumas ocasiões, resultar em uma sensação de sobrecarga.
Terapia do grito para a liberação emocional
Implementada pela primeira vez em 1970 pelo psicoterapeuta Arthur Janov, a terapia do grito envolve usar toda a energia para obter uma liberação emocional. “Quando as necessidades básicas não são atendidas, nos sentimos frustrados. Quando essa frustração é grande o suficiente, a dor é armazenada. Mas através da terapia do grito, ela é liberada. Essa dor que sentimos está no cérebro e é por isso que precisamos liberá-la”, disse Janov anos atrás em uma conversa com o The New York Times.
Com o passar dos anos e a popularidade de seu método, a terapia do grito também adotou o nome de terapia primal; no entanto, sua ideia central continuava a mesma: Janov afirmava que a neurose é o resultado de um trauma infantil reprimido e que a melhor maneira de abordá-lo era lembrando e recriando a experiência traumática.
Seguindo sua teoria, o paciente deveria expressar essa raiva ou frustração reprimida por meio de gritos espontâneos, descontrolados, histeria ou violência. Isso é descrito em seu livro The Primal Scream: Primal Therapy, The Cure for Neurosis, que causou forte polêmica na década de 70 ao proclamar ser a solução definitiva para o desconforto psicológico.
O livro ultrapassou a marca de um milhão de vendas, e a terapia em si tinha embaixadores globais como John Lennon, Yoko Ono e James Earl Jones.
— Eu tinha lido ou ouvido em algum lugar que gritar poderia funcionar como um exercício de liberação emocional. Essa informação ficou na minha cabeça, e me lembro que um dia estava muito tensa, presa no trânsito, não conseguia parar de pensar em tudo o que tinha que fazer, o que piorava minha situação e me deixava mais estressada e ansiosa. De repente, essa sugestão veio à minha mente, decidi colocá-la em prática e comecei a gritar dentro do carro. Em um minuto, eu era outra pessoa; isso tirou toda a tensão de uma vez, e me senti muito aliviada apesar de tudo o que estava acontecendo ao meu redor e de todas as expectativas para o resto do dia, — relata Camila, de 24 anos, sobre seus primeiros passos nesta prática.
Ao ser questionada se recomendaria esse exercício a outras pessoas, a jovem afirma:
— Com certeza recomendaria porque não envolve custos, é fácil de fazer e é eficaz; justamente, toda vez que me vejo em uma situação em que sinto que estou prestes a entrar em colapso, isso vem à minha mente, faço e instantaneamente me sinto mais aliviada.
Segundo Victoria, está comprovado neurologicamente que gritar ativa uma seção do cérebro que potencializa a força psíquica e também libera hormônios como serotonina e endorfina, que contribuem para a regulação emocional.
— É um bom método de descarga; alguns adicionam o benefício de bater em algo físico, como a cama, um travesseiro, um bicho de pelúcia; outros aproveitam e gritam na rua enquanto dirigem; e há aqueles que se sentem confortáveis fazendo isso na intimidade de seu quarto ou ao ar livre, — revela a psicóloga.
Além disso, ela aconselha que, quando alguém está em uma situação angustiante e não pode gritar, deve fazê-lo mais tarde quando estiver sozinho. Isso é “fundamental para evitar que o sintoma se manifeste no corpo”.
Noelia F. Vales, consultora psicológica, explica que a terapia do grito não é exclusiva para aliviar angústias ou desconfortos graves.
— Ajuda tanto para problemas complexos quanto para os mais simples. Seja qual for o motivo, o recomendável é identificar a emoção, dar espaço sem julgá-la e expressá-la. Essas três etapas levam a alcançar um estado de total liberação
Primeiro, é preciso reconhecer de onde vem a raiva, que ferida ou trauma está desencadeando isso, e só a partir disso os sintomas começarão a ser aliviados, segundo as palavras da conselheira.
“Tirar tudo de dentro”, mas em multidão
No auge da pandemia e cheia de aflições, Gretchen Miller sentiu que o desconforto dentro dela crescia cada vez mais devido ao excesso de responsabilidades e estresse da pandemia. Como resultado disso, a australiana de 54 anos escreveu no Facebook o seguinte: “Alguém mais sente vontade de gritar?”.
Consequentemente, centenas de respostas apareceram abaixo de sua pergunta. Alguns concordavam com o pedido, enquanto outros acrescentavam mensagens como: “quero gritar por causa das mudanças climáticas e da desigualdade econômica”, “quero colocar tudo para fora porque meu noivo decidiu que não me amava mais”, entre outras respostas.
A partir disso, formou-se o grupo “Shout Sisters”, uma comunidade de mulheres que, em 2021, começaram a se reunir ao ar livre para gritar suas frustrações na noite australiana.
No entanto, as Shout Sisters são apenas o começo dessa história. Com o tempo, em diferentes partes do mundo, mais grupos de mulheres começaram a se reunir para embarcar nessa mesma iniciativa. A maioria destaca que o que as atrai a fazer isso é a ideia de liberar sua raiva sem inibições. É uma liberdade que, segundo essas mulheres, é difícil de encontrar em um mundo que pode se tornar desconfortável e depreciativo para elas.
Sarah Harmon, terapeuta, professora de yoga e mãe de dois filhos, reuniu em um campo de futebol em Boston um grupo de 20 mulheres para que pudessem liberar todas as suas emoções através de gritos. Após essa reunião, as participantes começaram a perguntar quando seria o próximo encontro, então Harmon planejou outra sessão de gritos.
Durante essa sessão, a terapeuta incentivou as mulheres a gritarem palavrões. Em seguida, o grupo passou para uma fase de gritos “livres”, onde todos gritavam o que lhes viesse à mente.
“Acredito que é a intuição do corpo se libertando”, disse Sarah no programa norte-americano TODAY. “As emoções passam por nós quando permitimos, e a raiva é algo que todos conhecemos. Podemos senti-la, e é uma emoção que muitas vezes é tabu, especialmente para as mulheres”.