Representação do negro na fotografia desde o século 19 mostra preconceito da sociedade brasileira…

Foto da ama-de-leite Mônica, pertencente à Coleção Francisco Rodrigues, é emblemática da mistura complexa entre opressão e relações familiares durante a escravidão no Brasil. Crédito: Coleção Francisco Rodrigues/Acervo Joaquim Nabuco

Foto da ama-de-leite Mônica, pertencente à Coleção Francisco Rodrigues, é emblemática da mistura complexa entre opressão e relações familiares durante a escravidão no Brasil. Crédito: Coleção Francisco Rodrigues/Acervo Joaquim Nabuco

A fotografia chegou ao Brasil, em meados do século 19, sob o signo de uma modernidade que saudava o triunfo da tecnologia. Ao registrar pessoas e paisagens nacionais de uma forma tecnicamente diferente do desenho e da gravura, essa arte também captou uma sociedade que queria se ver retratada em franco processo de evolução. No entanto, havia uma camada da sociedade que não era dona da própria imagem. A representação da população negra na imagem fotográfica nos séculos 19 e 20 traz características que refletem uma situação de marginalidade social com a qual o país precisa lidar até hoje. Se a chaga da escravidão ficou relegada ao passado histórico, a forma pela qual os negros são mostrados em fotografias passaram décadas a fio, mesmo após a abolição, oscilando entre o mundo do trabalho e o do exotismo.

As imagens dos séculos 19 e 20 se converteram em documentos históricos valiosos de como o Brasil se percebia como nação. Parte importante deste acervo está na Brasiliana Fotográfica, localizada na Biblioteca Nacional, e no Instituto Moreira Salles, ambos no Rio de Janeiro, mas a Fundação Joaquim Nabuco, aqui no Recife, também concentra alguns dos registros mais importantes do período no Brasil, especialmente na Coleção Francisco Rodrigues, em poder da instituição desde 1979. “O grosso dessas imagens corresponde a um estrato social de profissionais liberais, proprietários agrícolas, famílias ligadas à elite e, entre elas, há poucos registros de negros. Este é um retrato da sociedade, porque as pessoas que ocupam estratos periféricos dela também estão na periferia da imagem. Não se costumava mostrar, por exemplo, as senzalas. A ama-de-leite é fotografada porque serve à casa-grande”, analisa o pesquisador e professor da UFPE José Afonso Júnior.

Continua…

As contradições presentes, por exemplo, nas imagens das amas-de-leite, são apontadas pela pesquisadora em tecnologias do fotossensível e artista visual Camila Targino, que fez sua dissertação de mestrado baseada na análise de fotos da Coleção Francisco Rodrigues. “Fiquei me perguntando o por quê dessas imagens serem tão reproduzidas e me questionei sobre esse comportamento colonialista presente ainda hoje. Essas fotos são muito interpretadas ou descritas como cenas de afeto. Como assim? Eram mulheres presas. Além disso, essa mulher negra não tinha direito de aparecer vestida e de posse de sua cultura. Os homens negros eram retratados com as vestes do burguês branco e isso cria um reverso estranho, uma relação ambígua”.

As pesquisadoras da Fundação Joaquim Nabuco Sylvia Costa Couceiro e Cibele Barbosa finalizaram o livro História afro-brasileira e cotidiano: um percurso visual pelo acervo da Fundação Joaquim Nabuco, com publicação prevista para o primeiro semestre de 2017, que é o primeiro volume de uma coleção sobre o tema. O objetivo da dupla foi pesquisar, em livros de história e sociologia, como os negros eram representados e oferecer uma alternativa a esses estereótipos em sala de aula.  Uma das questões que ambas perceberam foi a vinculação do negro à violência e os exemplos de sucesso eram retirados de outras culturas, em que livros citavam o legado de Nelson Mandela e Martin Luther King e deixavam de citar brasileiros.

A análise das coleções fotográficas da Fundaj e de gravuras demonstrou a dificuldade em encontrar materiais desvinculados do pitoresco ou relacionados à violência sofrida pelo negro. “As fotografias representam um modo de pensar de outra época. Esse segmento da população não era um interesse fotográfico por si só. Após a escravidão, as imagens começam a ficar mais antropológicas, etnográficas ou realizadas para fins de catalogação criminalística. Era o racismo científico. Nos anos iniciais do século 20, os negros começam a aparecer mais quando estão integrados a certos padrões sociais, ou seja, quando não se diferenciam. A cultura afro-brasileira, incluindo o candomblé, ainda era marginalizada e perseguida pela polícia. Isso só mudaria em meados do século”, afirmam as pesquisadoras.

CONTEMPORÂNEO

A partir dos anos 40 do século passado, fotógrafos como Pierre Verger, Mario Cravo Neto e José Medeiros passaram a registrar o negro sob um prisma menos preconceituoso, trazendo ao público imagens do candomblé ou focado em singularidades. No entanto, segundo o professor e pesquisador de fotografia Daniel Meirinho, os estereótipos relacionados à percepção do negro na sociedade ainda se encontram fortes na sociedade brasileira contemporânea. “O subemprego tem a estética do negro. Ele é a face da criminalização, do conflito com a lei, e os locais onde ele vive são reconhecidos como lugares onde há violência. Mesmo nomes como Mario Cravo Neto e Pierre Verger tinham uma relação muito estetizada com o tema”.

Segundo Meirinho, um exemplo pungente de reflexão sobre o papel do negro na sociedade brasileira contemporânea é o trabalho Postais para Charles Lynch, do Coletivo Garapa, inspirados em postais que circularam nos Estados Unidos no início do século 20, com registros de enforcamentos e linchamentos de negros realizados por brancos. Foi da atuação ativa de Lynch nesses episódios que se originou a palavra linchamento. A partir daí, o grupo coletou vídeos de linchamento publicados no Youtube e, desse material, foram extraídos frames e comentários de ódio, e a interferência dessas duas coisas foi feito um livro de artista. “A gente tem uma estética muito violenta sobre o negro. A fotografia do candomblé, do negro morto, do linchamento público, alimentam isso, assim como a apropriação dos corpos dessa população pela linguagem publicitária”.