Correio Braziliense
O Palácio do Planalto recebeu, nessa semana, um grupo de médicos que defende o uso da hidroxicloroquina. Eles discursaram no evento Brasil vencendo a covid-19 e contestaram o fato de que não há comprovação científica da medicação no tratamento de pessoas com o novo coronavírus, citando que “temos evidência 2-A” para a utilização da cloroquina.
“Para os técnicos que estão nos escutando, vocês sabem que isso é uma evidência que nos sustenta para tratar com total propriedade e convicção o que a gente faz. Nós já temos evidência 2-A, então, podemos e devemos medicar”, afirmou a médica Raissa Oliveira Azevedo, na presença do presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido).
A frase “evidência científica 2-A” passou, então, a ser repetida por parte da população que defende o uso do medicamento contra a covid-19. Mas é preciso muita calma para não confundir o nível de evidência com uma comprovação científica, como explicam especialistas.
David Urbaez, diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal e infectologista do Laboratório Exame, detalha que é preciso compreender o campo da medicina embasada em evidências para entender o assunto. “Essa área foi a grande resposta para anularmos, nas pesquisas, todos os desvios advindos da subjetividade do pesquisador, que sempre quer comprovar que aquilo que ele diz funciona mesmo, além de barrar interesses comerciais, que podem estar atrás de qualquer pesquisa de medicamento”, explica.
Viés de percepção
Apesar de chegar ao nível 2-A, os estudos sobre a cloroquina como medicação eficaz contra o novo coronavírus estão em um campo frágil, segundo Urbaez, pois tratam-se de trabalhos observacionais, que não utilizam um grupo de controle para comparar conclusões. “Esses trabalhos servem só como janela para chamar a atenção que aquilo poderá, eventualmente, ser algo que vale a pena ir a fundo, que vale a pena investir com mais rigorosidade científica. Nesse sentido, pode-se chegar a uma evidência até 2-A, que são evidências de estudos de corte, ou seja, de grupo que se observa, mas que não têm grupo controle”, explica.
Mais detalhadamente, pode-se dizer que esses testes não passaram por uma importante etapa de observação científica, os ensaios clínicos randomizados, que dividem os pacientes em grupos que recebem a medicação e outros que tomam placebo, sem que eles ou os pesquisadores saibam quais receberam o quê. “O efeito placebo é real. Apenas pelo fato de alguém estar cuidando das pessoas, elas podem ter melhora no quadro clínico. Isso anula totalmente o viés de percepção do pesquisador”, pontua David.
Em suma, não é possível concluir a eficácia de um medicamento que não passou por essas etapas. “Nos ensaios clínicos randomizados duplo-cego com placebo, são anulados quaisquer tipos de desvios resultantes da vontade do grupo de pesquisa de mostrar que aquilo é real. Isso é o que representa, então, a evidência 1-A”, classifica o especialista.
David Urbaez conclui que, atualmente, para propor um protocolo de medicamento, é exigida a evidência 1-A, que seja decorrente desses ensaios clínicos. “Infelizmente, a população geral, inclusive os próprios médicos têm pouquíssima formação em termos de interpretação da produção da verdade científica por meio da metodologia da medicina baseada em evidências. Por isso, temos essa confusão lamentável, dolorosa e condenável, com a cloroquina”, avalia.
Medicamento off label
A infectologista Ana Helena Germoglio ressalta o que vem sendo repetido pelos especialistas: “Não temos, hoje, nenhuma droga eficaz no tratamento da covid”. Ela explica que a cloroquina, em casos de novo coronavírus, encaixa-se no chamado medicamento off label, remédio utilizado para algo que não existe indicação prévia na bula.
“Para prescrever isso, devemos apontar os riscos e os benefícios desse tipo de tratamento, já que esse remédio não nasceu para esse tratamento”, ressalta a especialista. Ela lembra que há estudos avançados que procuraram responder aos questionamentos de benefícios e malefícios desse uso.
“Alguns estudos, bem iniciais, apontaram que o uso da cloroquina poderia ter efeito in vitro na redução da carga viral. Entretanto, um dos estudos de maior evidência que temos em relação à cloroquina são os RCTs, aqueles randomizados controlados. Já existem várias pesquisas assim que provam que o paciente não tem um benefício e pode até ter um malefício quando administrados”, pontua. Ana Helena conclui, detalhando que “os RCTs têm um nível de evidência acima dos estudos 2-A”, pois são de evidência A, enquanto os de nível 2 são de evidência B.