Via Jornal O Poder – A revista norte-americana Time é considerada a mais influente do mundo. Sua mais recente edição traz uma longa entrevista com o ex-presidente Lula. O Segundo Ato de Lula, é o título ao lado da bem produzida foto de capa.
Leia a seguir a apresentação da revista e o ping-pong com Lula.
O RETORNO
A volta de Luiz Inácio Lula da Silva à linha de frente da política foi uma bomba para o Brasil. Em abril de 2021 o Supremo Tribunal Federal anulou uma série de condenações por corrupção que excluíram o ex-presidente petista das eleições presidenciais de 2018. O tribunal afirmou que a parcialidade do juiz responsável pelo caso comprometeu o direito de Lula – como o ex-presidente é mundialmente conhecido – a um julgamento justo. A decisão preparou o terreno para um duelo entre Lula e o atual presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro nas eleições de outubro de 2022.
BRASIL DE VOLTA
Lula, que lançará oficialmente sua pré-candidatura no dia 7 de maio, promete levar o Brasil de volta aos bons tempos da sua Presidência (2003-2010), que ele encerrou com taxa de aprovação de 83%. Isso implicaria reavivar uma economia debilitada, salvar uma democracia ameaçada e recuperar uma nação marcada pela segunda maior taxa mundial de mortalidade ligada à Covid-19 e por dois anos de gestão caótica da pandemia. Até o momento, as promessas estão surtindo efeito: Lula aparece nas pesquisas com 45% das intenções de voto, contra 31% de Bolsonaro. Porém, esta diferença está diminuindo.
A ENTREVISTA
TIME sentou para conversar com Lula no fim de março, na sede do Partido dos Trabalhadores (PT) em São Paulo, para falar sobre o tempo que ele passou na prisão, sobre a guerra na Ucrânia e para saber se seus planos para o Brasil estão baseados em algo além da nostalgia. Essa transcrição foi condensada e editada para maior clareza.
A ENTREVISTA
P – Quando o Supremo Tribunal Federal restaurou seus direitos políticos no ano passado, você já estava, segundo a mídia brasileira, se preparando para uma vida mais tranquila, fora da política. Você decidiu imediatamente voltar à política quando isso aconteceu?
R – Eu na verdade nunca desisti da política. A política está em cada célula minha, a política está no meu sangue, está na minha cabeça. Porque o problema não é a política simplesmente, o problema é a causa que te leva à política. E eu tenho uma causa.
Quando deixei a Presidência em 2010, efetivamente eu não pensava mais em ser candidato à Presidência da República. Entretanto, o que eu estou vendo, doze anos depois, é que tudo aquilo que foi política para beneficiar o povo pobre— todas as políticas de inclusão social, o que nós fizemos para melhorar a qualidade das universidades, das escolas técnicas, melhorar a qualidade do salário, melhorar a qualidade do emprego—, tudo isso foi destruído, desmontado. Porque as pessoas que começaram a ocupar o governo depois que deram o golpe na presidenta Dilma [Rousseff] eram pessoas que tinham o objetivo de destruir todas as conquistas que o povo brasileiro tinha obtido desde 1943.
Há uma expectativa de que eu volte a presidir o país porque as pessoas têm boas lembranças do tempo em que eu fui presidente. As pessoas trabalhavam, as pessoas tinham aumento de salário, os reajustes salariais eram acima da inflação. Então eu penso que as pessoas têm saudades disso e as pessoas querem isso melhorado.
P – A situação do Brasil hoje — a polarização política, a economia, o panorama internacional — é muito diferente do que quando você ganhou a Presidência pela primeira vez. Não vai ser mais difícil governar desta vez?
R- O futebol americano tem um jogador, que aliás é casado com uma brasileira que é modelo, e que é o melhor jogador do mundo há muito tempo. A cada jogo que ele faz, a torcida fica exigindo que ele jogue melhor do que no jogo anterior. No caso da Presidência é a mesma coisa. Só tem sentido eu estar candidato à Presidência da república porque eu acredito que eu sou capaz de fazer mais e fazer melhor do que eu já fiz.
Eu tenho clareza de que eu posso resolver os problemas [do Brasil]. Eu tenho a certeza de que esses problemas só serão resolvidos quando os pobres estiverem participando da economia, quando os pobres estiverem participando do orçamento, quando os pobres estiverem trabalhando, quando os pobres estiverem comendo. Isso só é possível se você tiver um governo que tenha compromisso com as pessoas mais pobres.
P – Muitas pessoas no Brasil dizem que houve muitas encarnações do Lula, especificamente em política econômica. Qual Lula temos hoje?
R – Eu sou o único candidato com quem as pessoas não deveriam ter essa preocupação, porque eu já fui presidente duas vezes. E a gente não discute política econômica antes de ganhar as eleições. Primeiro você precisa ganhar para depois saber com quem você vai compor e o que você vai fazer. Quem tiver dúvida sobre mim olhe o que aconteceu nesse país quando eu fui presidente da República: o crescimento do mercado. O Brasil tinha dois IPOs. No meu governo fizemos 250 IPOs. O Brasil devia 30 bilhões, o Brasil passou a ser credor do FMI, porque emprestamos 15 bilhões. O Brasil não tinha um dólar de reserva internacional, o Brasil tem hoje 370 bilhões de dólares de reserva internacional. […] Então as pessoas precisam ter em conta o seguinte: ao invés de perguntar o que é que eu vou fazer, olhe o que eu fiz.
P – Na primeira Presidência, o petróleo, entre outros produtos, impulsionaram muito esse sucesso. Agora, com a crise climática, estamos tentando usar menos combustíveis fósseis. O candidato à Presidência na Colômbia, Gustavo Petro, propôs um bloco antipetróleo em que os países deixariam imediatamente de explorar o petróleo. Você quer se unir a este bloco?
R – Veja, eu acho que o Petro tem o direito de fazer todas as propostas que ele quiser fazer. Mas no caso do Brasil é irreal. No caso do mundo é irreal. Você ainda precisa do petróleo por um tempo, você não consegue…
Porém a ideia é continuar extraindo o petróleo que já descobriram, mas deixar de explorar. Você quer deixar de explorar?
Enquanto você não tiver energia alternativa, você vai utilizar a energia que você tem. Isso vale para o Brasil e vale para o mundo inteiro. Veja a dependência da nossa querida Alemanha agora. Angela Merkel tomou a decisão de fechar todas as usinas nucleares, não contava com a guerra da Ucrânia. Hoje a Europa é muito dependente dos russos para poder ter energia. O que você pode estabelecer é um plano de longo prazo para você diminuir [o consumo de petróleo] na medida em que você vai criando alternativas. Não dá para imaginar que os Estados Unidos vão parar de utilizar petróleo do dia para a noite, ou qualquer país.
P – Quero falar da Ucrânia. Você sempre teve orgulho de poder falar com todos—Hugo Chávez e também George Bush. Mas o mundo de hoje é muito fragmentado diplomaticamente. Quero saber se sua abordagem na diplomacia ainda funciona. Você poderia falar com Putin depois da invasão da Ucrânia?
R – Nós, políticos, colhemos aquilo que nós plantamos. Se eu planto fraternidade, solidariedade, concórdia, eu vou colher coisa boa. Mas se eu planto discórdia, eu vou colher desavenças. Putin não deveria ter invadido a Ucrânia. Mas não é só o Putin que é culpado, são culpados os Estados Unidos e é culpada a União Europeia. Qual é a razão da invasão da Ucrânia? É a OTAN? Os Estados Unidos e a Europa poderiam ter dito: ‘A Ucrânia não vai entrar na OTAN’. Estaria resolvido o problema.
P – Você acha que a OTAN foi a razão da Rússia para invadir?
R – Esse é o argumento que está colocado. Se tem um segredo nós não sabemos. O outro é a [possibilidade de a] Ucrânia entrar na União Europeia. Os europeus poderiam ter resolvido e dito: ‘Não, não é o momento de a Ucrânia entrar na União Europeia, vamos esperar’. Eles não precisariam fomentar o confronto!
P – Mas acho que tentaram falar com a Rússia.
R – Não tentaram. As conversas foram muito poucas. Se você quer paz, você tem que ter paciência. Eles poderiam ter sentado numa mesa de negociação e passado 10 dias, 15 dias, 20 dias, um mês discutindo para tentar encontrar a solução. Então eu acho que o diálogo só dá certo quando ele é levado a sério.
P – Então se você fosse presidente neste momento, o que você faria? Você seria capaz de evitar o conflito?
R – Eu não sei se seria capaz. Eu, se fosse presidente hoje, teria ligado para o [Joe] Biden, teria ligado para o Putin, para a Alemanha, para o [Emmanuel] Macron, porque a guerra não é saída. Eu acho que o problema é que, se a gente não tentar, a gente não resolve. É preciso tentar.
Às vezes eu fico preocupado. Eu fiquei muito preocupado quando os Estados Unidos e quando a União Europeia adotaram o [Juan] Guaidó [então líder da assembleia nacional da Venezuela] como presidente do país [em 2019]. Você não brinca com democracia. O Guaidó para ser presidente da Venezuela teria que ser eleito. A burocracia não substitui a política. Na política são os dois chefes que mandam, os dois que foram eleitos pelo povo, que têm que sentar numa mesa de negociação, olho no olho, e conversar.
E agora, às vezes fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin. Ele é tão responsável quanto o Putin. Porque numa guerra não tem apenas um culpado. O Saddam Hussein era tão culpado quanto o Bush. Porque o Saddam Hussein poderia ter dito: ‘Pode vir aqui visitar e eu vou provar que eu não tenho armas’. Ele ficou mentindo para o seu povo. Agora, esse presidente da Ucrânia poderia ter dito: ‘Olha, vamos deixar para discutir esse negócio da OTAN e esse negócio da Europa mais para frente. Vamos primeiro conversar um pouco mais.’
P – Então Zelensky tinha que falar mais com Putin, mesmo com 100,000 soldados russos na sua fronteira?
R – Eu não conheço o presidente da Ucrânia. Agora, o comportamento dele é um comportamento um pouco esquisito, porque parece que ele faz parte de um espetáculo. Ou seja, ele aparece na televisão de manhã, de tarde, de noite, aparece no parlamento inglês, no parlamento alemão, no parlamento francês como se estivesse fazendo uma campanha. Era preciso que ele estivesse mais preocupado com a mesa de negociação.
P – Não seria um pouco difícil dizer isso a Zelensky? Ele não queria guerra, mas ela chegou.
R – Ele quis a guerra. Se ele [não] quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais. É assim. Eu fiz uma crítica ao Putin quando estava na Cidade do México, dizendo que foi errado invadir. Mas eu acho que ninguém está procurando contribuir para ter paz. As pessoas estão estimulando o ódio contra o Putin. Isso não vai resolver! É preciso estimular um acordo. Mas há um estímulo [ao confronto]! Você fica estimulando o cara [Zelensky] e ele fica se achando o máximo. Ele fica se achando o rei da cocada, quando na verdade deveriam ter tido conversa mais séria com ele: ‘Ô, cara, você é um bom artista, você é um bom comediante, mas não vamos fazer uma guerra para você aparecer’. E dizer para o Putin: ‘Ô, Putin, você tem muita arma, mas não precisa utilizar arma contra a Ucrânia. Vamos conversar!’
P – O que você acha de Joe Biden?
R – Eu fiz até um discurso elogioso ao Biden quando ele anunciou o primeiro programa econômico dele. O problema é que não basta você anunciar um programa, é preciso executar o programa. E eu acho que o Biden está vivendo um momento difícil.
E acho que ele não tomou a decisão correta nessa guerra Rússia e Ucrânia. Os Estados Unidos têm um peso muito grande e ele poderia evitar isso, e não estimular. Poderia ter falado mais, poderia ter participado mais, o Biden poderia ter pegado um avião e descido em Moscou para conversar com o Putin. É esta atitude que se espera de um líder. Que ele tenha interferência para que as coisas não aconteçam de forma atabalhoada. E eu acho que ele não fez.
P – Biden deveria ter feito mais concessões a Putin?
R – Não. Da mesma forma que os americanos convenceram os russos a não colocar mísseis em Cuba em 1961, o Biden poderia falar: ‘Vamos conversar um pouco mais. Nós não queremos a Ucrânia na OTAN, ponto’. Não é concessão. Deixa eu lhe contar uma coisa: se eu fosse presidente da República e me oferecessem ‘o Brasil pode entrar na OTAN’, eu não ia querer.
P- Por quê?
R – Porque eu sou um cara que só pensa em paz. Eu não penso em guerra. […] O Brasil não tem contencioso nem com os Estados Unidos, nem com a China, nem com a Rússia, nem com a Bolívia, nem com a Argentina, nem com o México. E é o fato de o Brasil ser um país de paz que vai lhe fazer restabelecer a relação que nós criamos de 2003 a 2010. O Brasil vai virar protagonista internacional, porque a gente vai provar que é possível ter um mundo melhor.
P – O que você precisa fazer para conseguir isso?
R – É urgente e é preciso a gente criar uma nova governança mundial. A ONU de hoje não representa mais nada. A ONU de hoje não é levada a sério pelos governantes. Porque cada um toma decisão sem respeitar a ONU. O Putin invadiu a Ucrânia de forma unilateral, sem consultar a ONU. Os Estados Unidos costumam invadir os países sem conversar com ninguém e sem respeitar o Conselho de Segurança. Então é preciso que a gente reconstrua a ONU, coloque mais países, envolva mais pessoas. Se a gente fizer isso, a gente começa a melhorar o mundo.
P – No Brasil, durante a pandemia, a população negra sofreu um risco de mortalidade maior que os brancos, e uma taxa maior de desemprego também. E os problemas com a violência policial pioraram durante o governo do Bolsonaro. Você tem coisas que vai fazer para melhorar o mundo para os brasileiros negros especificamente?
R – Olha, eu li muito sobre a escravidão quando eu estava preso e eu às vezes tenho dificuldade de compreender o que foram 350 anos de escravidão. E eu tenho mais dificuldade de compreender que a escravidão ela está dentro da cabeça das pessoas, o preconceito está dentro da cabeça das pessoas. Aqui no Brasil, na periferia brasileira, milhares de jovens são mortos quase todo mês, todo ano. Então não é possível isso continuar. Quando eu estava na presidência nós criamos uma lei para que a história africana fosse contada na escola brasileira. Para que a gente aprendesse sobre a história africana para não ver os africanos como cidadãos inferiores. Então nós precisamos começar essa educação dentro de casa, na escola. E o Bolsonaro despertou o ódio, despertou o preconceito. Aí tem outros presidentes também na Europa, na Hungria, [que fazem o mesmo]; está aparecendo muito fascista, muito nazista no mundo.
P – O Bolsonaro tem culpa pelo racismo hoje no Brasil ou é um país racista?
R – Eu não diria que ele tem culpa pelo racismo porque o racismo é crônico no Brasil. Mas ele estimula.
P – Você passou por muitas tragédias pessoais nos últimos cinco anos. Isso mudou você de alguma maneira?
R – Não. Eu confesso que se eu dissesse a você que eu não fiquei magoado, que eu não fiquei muito nervoso com os mentirosos que montaram essa quadrilha para me condenar, eu estaria mentindo. Eu tinha consciência do que estava acontecendo no Brasil: o impeachment da Dilma não poderia terminar na Dilma, porque não tinha nenhum sentido fazer o impeachment da Dilma e dois anos depois o Lula voltar a ser presidente da República. Então era preciso afastar o Lula. E como eles não tinham como afastar, eles resolveram construir um rosário de mentiras contra mim para poder me colocar na cadeia. Hoje eu estou aqui, livre, todos os meus processos foram anulados.
P – Sim, as condenações foram anuladas. Mas como te impactaram?
R – Eu fiquei 580 dias na cadeia. Eu li muito. Então eu fiz muita reflexão, eu me preparei para sair da cadeia sem ódio, sem mágoa, sem ressentimento, apenas lembrando que aquilo foi um processo histórico que eu não posso esquecer. Eu não posso esquecer, mas eu não posso colocar na mesa esse assunto todo dia porque é uma coisa do passado. Eu quero pensar no futuro.
Para você entender a minha vida, eu fui comer pão pela primeira vez com sete anos de idade. A minha mãe, muitas vezes, não tinha nada para colocar no fogão para fazer comida para a gente. E eu nunca vi minha mãe desesperada. Ela sempre falava o seguinte: ‘Amanhã vai ter. Amanhã vai melhorar’. E isso foi introjetado na minha consciência, no meu sangue, e eu sou assim. Não tem problema que a gente não consiga vencer.
Eu tenho orgulho de provar que um metalúrgico que não tem diploma universitário tem mais competência para governar esse país do que a elite brasileira toda. Porque a arte de governar é você saber utilizar o coração junto com a razão.
P – Você vai se casar em breve. Você quer falar um pouco sobre sua noiva?
R – Eu não gosto de falar dela. Porque ela tem autonomia para falar dela.
P – Você aprendeu alguma coisa com ela?
R – Eu aprendi. Eu aprendi que quando você perde a tua mulher e você pensa que a vida não tem mais sentido, quando você pensa que tudo acabou, aparece uma pessoa que começa a dar sentido à vida outra vez. Estou apaixonado como se eu tivesse 20 anos de idade, como se fosse minha primeira namorada. Vou casar da forma mais tranquila possível e vou fazer a campanha feliz.
Então, um cara que está feliz como eu não tem que ter outra preocupação. Não tem que ter raiva, não tem que falar mal dos adversários. Deixa os adversários fazerem o que eles quiserem. Brigar, xingar. Eu, sinceramente, se puder faço uma campanha falando de amor. Eu não acho que seja possível você ser um bom presidente se você só tem ódio dentro de você, se você só tem vingança dentro de você. Não. Você tem que ter paz e pensar no futuro. O que passou, passou. Eu vou construir um novo Brasil.