Geraldo Azevedo sobre prisão na ditadura: ‘Ficava encapuzado, nu e eles em volta ‘canta, canta”

O GLOBO

O pernambucano Geraldo Azevedo mora há 50 anos no Rio, mas guarda alguns hábitos de sua terra natal, além do sotaque carregado. Comer de colher é um deles.

Outras manias do músico, essas adquiridas já em solo carioca, são costurar e passar a ferro as próprias camisas. Pouco antes de receber O GLOBO, aliás, ele estava com o ferro na mão.

O compositor também não abre mão de fazer as próprias unhas. Desenvolveu até uma técnica pessoal: corta uma bolinha de pingue-pongue no formato delas e cola por baixo. Ficam mais resistentes para dedilhar o violão. O instrumento também foi desenhado por ele. Depois de uma escoliose, projetou estrutura com mais apoio para não ter que entortar tanto o corpo.

Na lembrança, ele guarda ainda novenas cantadas por sua mãe, professora, que até tabuada ensinava cantando. O som dos violeiros e repentistas, além dos aboios, também o marcaram, influenciando sua música. Hoje, nada lhe dá mais alegria do que o público cantando suas canções. É o que acontecerá sexta-feira, quando faz o show “Solo contigo”, no Teatro Rival. A apresentação é na véspera de seu aniversário de 75 anos, no sábado. A nova idade chega com mais trabalho. Este ano, ele fará disco de forró, outro de São João, além de um terceiro de inéditas. No meio do ano, sai em turnê com Chico César.

Como se sente aos 75 anos? Sua pele é boa, né? Você pinta o cabelo?

Hein? Ah, eu tinjo um pouquinho (risos). Minha infância foi no sol. Nasci na beira do Rio São Francisco, pés descalços, até 13 anos não sabia o que era luz elétrica. A gente plantava, capinava e tinha que ficar vigiando a plantação para o passarinho não comer. Para aliviar, entrava no Rio. Depois larguei o sol pra lá e acho que isso ajudou a minha pele. Nunca senti o tempo passando, mas agora tá rápido demais, né? Mas tenho o maior vigor de trabalhar, de fazer música e cantar.

Você foi preso na ditadura em 1969. Por quê?

Eu convivia com muitas pessoas. Havia umas reuniões no Teatro Glaucio Gil em que ia muita gente, o Glauber Rocha, Caetano… E me pediram para fazer um abaixo-assinado contra a censura. Passei 40 dias preso na Ilha das Flores, 20 numa solitária, fui muito torturado, tomei muita porrada. Durante as sessões, eu dizia que não tinha nada a ver com aquilo, que só fazia música e desenho. E me deram um violão para tocar. Toquei e o torturador se sensibilizou e não me torturaram mais. Fui solto por causa do violão. Queriam que eu tocasse na festa do comandante e eu disse que só tocaria se fosse livre. Quando me soltaram, tive que tocar na festa dos oficiais.

Mas aí houve a segunda prisão, em 1975, no Governo Geisel…  É verdade que tinha que cantar num frigorífico nu, só com a cabeça coberta?

Parece que fui denunciado. A gente era simpatizante de pessoas que traziam informações da Guerrilha do Araguaia, panfletos… Um dos amigos da minha primeira mulher, Vitoria, era um deles, Zé Milton. Era do Ação Popular. Ele foi preso e uma das estratégias era denunciar quem não tinha muita importância. Quando me entregaram (desta vez, ele ficou quatro dias preso no quartel da Barão de Mesquita, depois foi encaminhado para o Dops), acharam que eu era um tal de Valério. Sofri muito para provar que não era. Até que me safei. Mas enquanto fiquei lá… Esse lugar que a gente ficava era dentro de um frigorífico, tudo coberto de gelo, uma sirene tocando sem parar e um breu absoluto.  Eu tinha a música “Caravanas” na novela “Gabriela Cravo e Canela”, da Globo, e na hora da novela me botavam para cantar. Ficava encapuzado, nu e eles em volta “canta, canta”. Aí começavam a bater e eu cantava, né? Chegava um mais atrevido e dizia “agora canta e dança”. Eu ficava lá rodando feito um otário. Durante muito tempo tive vergonha disso, é muito humilhante. Os caras cheiravam cocaína pra bater na gente. Enfiavam estiletes embaixo da minha unha. Até que um dia simulei um desmaio durante um interrogatório com choque elétrico. Chamaram um médico e pararam.

Em seu depoimento do Museu da Imagem e do Som em 2016, depois de uma operação de pedra nos rins, você contou que tinham te dado um bocado de drogas, menos as de que você gostava… Quais são elas? Você fuma maconha? É a favor da legalização?

Sou a favor. Eu fumo maconha, que não considero droga, é uma planta. Só não fumo mais porque faz mal à voz. Essa ilegalidade é absurda. Vejo as pessoas com muito mais euforia com álcool e vejo tabaco fazendo muito mais mal do que maconha. Tenho colegas que fumavam comigo e ao chegarem ao parlamento e virarem deputados e senadores, passaram a negar. Porque tira voto. A gente vive num mundo de hipocrisia. Não acho que maconha é uma porta para outras drogas, que acho agressivas. Tem cracolândia em tudo quanto é lugar. Acho que querem ver a miséria do povo e não ajudar a educá-los. A falta de educação é que mata.

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