Cora Coralina completaria 130 anos no próximo dia 20. A mulher que estudou apenas até a terceira série do curso primário criou versos preciosos. Tornou-se o maior nome da literatura goiana e uma das mais admiradas poetisas brasileiras, apesar do início tardio na carreira. Nascida no ano de 1889 e batizada Anna Lins dos Guimarães Peixoto, começou a publicar os seus trabalhos quando tinha 75 anos. As letras eram um passatempo, ganhava a vida como doceira.
Os delicados versos levaram Cora e sua cidade natal, Goiás Velho, para o mundo. Seus textos falam da vida simples na primeira capital do estado onde está o quadrilátero da nova capital do país. Obra extensa e ainda não completamente divulgada. A única filha viva da autora, que mora em São Paulo, guarda cadernos originais e inéditos da mãe. Alguns escritos a lápis. Tesouro tornado público de tempos em tempos, a conta-gotas. Mas outras relíquias da escritora estão à mostra na sua terra.
Mais conhecido como Goiás Velho, o município de 22 mil pessoas, a 320km de Brasília, conserva muito dos tempos de sua filha mais ilustre, que morreu em 10 de abril de 1985, aos 95 anos. A cidade descrita por Cora em seus poemas e contos pode ser contemplada e explorada em um passeio pelas ruelas de pedra ladeadas pelo casario dos séculos 18 e 19, onde mulheres bordam e fazem doces cristalizados. Ou nas praças, nas lojas, nos bares e à beira do Rio Vermelho.
A simplicidade e a pequena estatura de Cora Coralina não combinam com o tamanho e o peso de seu nome. Sobretudo 130 anos após o nascimento da poetisa e doceira. “Uma mulher além do seu tempo, que mesmo enfrentando dificuldades, preconceitos, acreditou nos valores humanos. Sempre recomeçando. A cidade se alegra em 20 de agosto, a semente foi lançada em terra fértil. Celebrar os 130 anos de nascimento de Cora é, acima de tudo, relembrar a importância que ela tem para a sua cidade natal. E Cora hoje não pertence à velha Goiás, ela é do mundo”, afirma Marlene Velasco, antiga amiga da poetisa e diretora do Museu Cora Coralina.
No dia 20 próximo, o espaço, dedicado à memória de Cora e toda Goiás Velho homenageiam a conterrânea. A data também marca os 30 anos do museu, espaço de 3 mil m² que inclui o quintal onde Cora plantava as frutas usadas em seus famosos doces cristalizados e onde viveu boa parte da vida. “Ela mesma queria que esse dia fosse lembrado como dia de confraternização, de amizade entre os povos, por isso ela criou o Dia do Vizinho, que comemoramos desde 1980”, ressalta Marlene.
A programação tem início com uma tradicional cavalgada que percorrerá o Caminho de Cora, indo das ruínas do antigo Arraial de Ouro Fino — um dos primeiros povoados da região, localizado a cerca de 10 quilômetros da GO-070 sentido Goiânia/Cidade de Goiás — com chegada prevista no museu da poetisa. O governador do estado, Ronaldo Caiado (DEM), estará presente para lançar, oficialmente, o Ano de Cora Coralina. Os Correios também aproveitaram a data para homenagear a poetisa com um selo comemorativo. Por fim, haverá uma missa em ação de graças no Santuário Nossa Senhora do Rosário e a partilha de um bolo. Uma serenata com o músico Marcelo Barra encerra o dia.
O casarão onde Cora morou da infância ao início da juventude e, depois, na velhice, expõe fotos da poetisa, seus móveis e alguns objetos pessoais. Funcionários bem treinados descrevem em detalhes a trajetória da moradora. O imóvel é a atração mais visitada de Goiás Velho, considerada Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 2001.
Mineração
A cidade de Goiás ganhou o título por preservar o casario que testemunhou a ocupação e a colonização das terras do Brasil central ao longo dos séculos 18 e 19. O traçado urbano é um exemplo do desenvolvimento orgânico de uma cidade mineradora, adaptada às condições da região, segundo a Unesco. Ainda que modestas, tanto a arquitetura pública quanto a arquitetura privada formam um todo harmonioso, graças ao uso coerente de materiais e técnicas locais, destacou a entidade ao tombar a cidade.
Assim como Cora, mulheres fazem doce e poesia
O costume de escrever poesia, declamar e fazer doces cristalizados é mantido por mulheres de idades e classes sociais variadas na Goiás de Cora Coralina. Todas trabalham de forma independente. Muitas fazem e vendem seus produtos em casa. São extrativistas de cajuzinho, murici, cagaita, cajazinho. Mas um grupo decidiu se unir em uma associação para trocar experiências, expandir a mente e os negócios.
Batizado de Mulheres Coralinas, o grupo surgiu em 2016. Ele nasceu como projeto de apoio a mulheres contra a violência doméstica. Teve como inspiração Cora Coralina por ela ter sido uma mulher que venceu muitos obstáculos em função das suas habilidades e do empreendedorismo.
Antes de fundarem uma associação, as primeiras coralinas passaram por um treinamento, de 2014 a 2016. Nos dois anos, as 150 mulheres formadas pelo projeto receberam orientação e, acima de tudo, ganharam voz. Elas tiveram a oportunidade de contar as suas histórias e aprender em oficinas de artesanato.
Ao fim da experiência, 70 decidiram se manter unidas e criar a associação. Deram o maior passo em 2017, ao ocupar uma loja no antigo Mercado Central da cidade. No pequeno mas charmoso e aconchegante espaço, elas expõem doces e artesanatos de diversos tipos, tudo aliado aos versos de Cora.
Artistas
Cecília Souza Santos da Costa, 74 anos, também é uma das mais ativas coralinas. Doceira de mão cheia, ela adora declamar os poemas da mulher que a inspirou. E faz questão de deixar claro que nem todas ali foram vítimas de violência. “Eu me casei aos 72 anos com um homem carinhoso. Ele me trata como se eu fosse uma princesa”, relata a contabilista aposentada, que faz doce duas ou três vezes por semana.
Por outro lado, Maria Sebastiana da Silva Santa, 61, não esconde as dificuldades da vida como bordadeira, doceira e escultora de argila. “Sempre trabalhei muito. Com as minhas habilidades, criei a minha família e construí a minha casinha”, observa. “Com as Mulheres Coralinas, mudei o meu jeito de pensar. Eu era uma mulher muito retraída, não tinha opinião. Hoje, só faço o que quero. Aqui, aprendo e ensino”, emenda.
Janice do Carmo Almeida Beltrão, 56 anos, também começou a trabalhar cedo. Fazendo bordado, crochê e salgados, criou os três filhos ao lado do marido relojoeiro. Com as Coralinas, aprendeu outras técnicas e a valorizar os seus produtos. “Tenho orgulho quando vendo uma peça!”, ressalta. Além da história, a loja das Mulheres Coralinas tem um grande diferencial: é uma das duas entidades autorizadas a fazer e vender produtos com a imagem e os versos de Cora.
Uma vida de obstáculos
Foto: Arquivo Museu Casa de Cora Coralina/Divulgação
Batizada Anna Lins dos Guimarães Peixoto, Cora Coralina nasceu na cidade de Goiás em 20 de agosto de 1889. Filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador, nomeado por Dom Pedro II, e de Jacinta Luísa do Couto Brandão, uma dona de casa, ela cursou apenas até a terceira série do curso primário.
Aos 15 anos, Anna publicou os primeiros versos em 1908, no jornal de poemas A Rosa, criado com algumas amigas. Em 1910, seu conto Tragédia na Roça foi publicado no Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás, com o pseudônimo de Cora Coralina. Em 1911, ela fugiu, grávida de gêmeos — a escritora teve seis filhos, mas dois não sobreviveram — com o advogado Cantídio Tolentino Bretas, casado com outra mulher. Eles se mudaram para Avaré, no interior de São Paulo. Em 1922, Cora foi convidada para participar da Semana de Arte Moderna, mas o marido a impediu.
Cora e Cantídio só se casaram em 1925, quando ele ficou viúvo, pois à época não existia o divórcio. Quando o marido morreu, Cora vendeu linguiça, banha, livros, fez doces para vender e trabalhou na roça para criar os filhos. Considerava os doces cristalizados de caju, abóbora, figo e laranja, que encantavam os vizinhos e amigos, obras melhores do que os poemas escritos em folhas de caderno. Quando os filhos cresceram, ela decidiu voltar para Goiás, em 1946.
O primeiro livro da poetisa só foi publicado em 1965, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. Mas a escritora obteve reconhecimento aos 75 anos, quando Carlos Drummond de Andrade elogiou publicamente os versos da vovozinha lírica em um artigo, publicado no Jornal do Brasil.
Em vida, ela publicou mais dois livros: Meu livro de cordel, em 1976, e Vintém de cobre — meias confissões de Aninha, em 1983. Sua poética ganhou notoriedade em 1980. Sua chegada à literatura brasileira não lhe tirou nem a simplicidade, nem a ode às raízes nem mesmo a batalha pela emancipação feminina. Cora Coralina morreu em Goiânia, devido às complicações de uma pneumonia, em 10 de abril de 1985.