A filosofia, degrau fundamental para toda ciência…

Ramón Lara e Vitor Fernandes/Dom Total

A Filosofia e a Ciência sempre conservaram uma forte conexão, mas não foram sempre o que entendemos hoje. Algumas vezes estiveram mais próximas e outras mais antagônicas. O que entendemos hoje como Ciência, nem sempre foi o que as pessoas entenderam, daí a importância de olhar para trás e buscar a história.

Apresentaremos a reflexão a partir de 4 pontos que conformam alguns dos principais elementos para pensar a Filosofia e a Ciência. Esta última é, antes de tudo, desejo de conhecer. Ela é uma forma de conhecimento, assim como a arte e a religião, por exemplo.

Todavia, a Ciência se entende através de um método, chamado de científico, possui um imperativo por resultados que possam ser verificados e uma pretensão de objetividade. Fala-se pretensão porque nem sempre é atingida. Aqui encontramos um exemplo dos questionamentos da Filosofia à Ciência.

A Filosofia, para quem se pergunta o que significa, trata do estudo crítico do pensamento humano, das ideias, da sabedoria e da invenção de saberes. Ela se aprofunda em diferentes temas e também pretende aprofundar as reflexões e as perguntas mais fundamentais do ser humano e que este, em alguma medida, faz a si mesmo e responde. Por outro lado, quem pergunta “para que serve a filosofia?”, respondemos com mais uma pergunta: por que perguntar para que serve? Ela não “serve” como a Engenharia, ela é antes de tudo, reflexão, sensatez, como pontuava Aristóteles: “O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete”. Perguntar o “para quê” encerra a filosofia em um campo de utilidade mecânico e restrito.

1- Fazer história

Quando falamos de Filosofia e Ciência, devemos olhar para a história. Dizer que a Astrofísica é Ciência, sem falar da astrologia, não faz justiça da história. O mesmo acontece com o discurso da Química como Ciência, sem antes falar da alquimia, ou da Medicina, sem falar do ser humano e a religião. A filosofia tem gerado, acompanhado e desenvolvido Ciência há mais de 2.500 anos. Um exemplo importante é a Medicina. Antes exercida por sacerdotes e leigos como um saber prático e místico, alcançou status e método de Ciência graças às contribuições do pensamento e método filosófico grego antigo.

Também é a filosofia que está na gênese da Antropologia, da Psicologia, da Psicanálise, das Ciências Políticas, das Ciências Sociais, da Física e da Engenharia. Em sã “consciência científica”, alguém dispensaria Descartes da história da Ciência moderna?

Porém, a Filosofia não é simplesmente um fazer história, mas o estudo crítico dessa história. Ela traz perguntas como a que indaga sobre a energia e que conduz ao descobrimento da eletricidade e chega até a informática e a inteligência artificial. Mas não se presta somente a apontar o caminho epistemológico. A Filosofia problematiza o que esse caminho supõe para o ser humano.

Por exemplo, a Ciência, aplicada à comunicação, permitiu que os seres humanos passassem dos sinais de fumaça e desenhos em pedras à comunicação atual por meio de dispositivos móveis. Contudo, como esse tipo de comunicação afeta os seres humanos? De que forma define as formas de organização social? Acaso esse novo modelo e dispositivos determinam novos entendimentos sobre o que é bom e o que não é?

2- Ética: o que supõe a ciência?

Assim chegamos ao segundo ponto de reflexão na interface entre Filosofia e Ciência: a Ética. Esta é uma disciplina dentro da Filosofia que estuda ou se pergunta pelo bom e o mau das propostas, pelos princípios que dirigem ou definem o agir humano.

A Ética enriquece o saber científico porque recupera o elemento humano da epistemologia através, por exemplo, da pergunta pelas consequências dos empreendimentos científicos. A Ciência pela Ciência, esvaziada de reflexão, pode ser altamente perigosa. Para ilustrar, pensemos na Ciência que possibilitou a bomba atômica. Alguns defendem que a ciência atômica teve seu objeto nos avanços médicos e não na guerra, mas essa abordagem parece um pouco ingênua. Quais limites éticos devem ser colocados à Ciência? Quando pesquisadores se perguntam por isso, já escapam do campo científico e adentram o filosófico.

Mais recentemente, os avanços científicos moldaram nossa forma de vida a partir da tecnologia, dependendo da energia que vem do petróleo. Mas, por ser o petróleo, grosso modo, um recurso natural não renovável e sua conquista envolver domínio e ganância, o poder sobre os territórios que o possuem acarretou em guerras, pobreza e deslocamentos de pessoas – eufemismo que usamos para nos referir aos refugiados.

Lembremos da questão da história e demos mais um passo. A história, no âmbito da Ciência, muitas vezes é chamada de avanço ou progresso, supondo que o conhecimento traz uma evolução para o ser humano. Porém, o saber filosófico atual perguntará que tipo de progresso é o que a ciência traz. Afinal, mesmo depois de tanto avanço, encontramos no mundo muita fome, guerra e destruição ecológica.

E nem vamos entrar nas contribuições da Ética Filosófica às práticas políticas e econômicas do mercado financeiro. Se começarmos a falar de Michael Sandel esse texto não vai ter fim…

3- Os paradigmas e suas crises

Até agora apresentamos a Filosofia como geradora e balizadora do saber pretensamente onipotente da Ciência. Mas nem sempre uma dialoga com a outra através dos limites. A Filosofia também reflete as formas de se entender e dialogar com a Ciência para, a partir dela mesma, entender as melhores condições dos contextos científicos.

Como exemplo, podemos nomear o clássico da filosofia da ciência, A estrutura das revoluções científicas (1962), de Thomas Khun. No texto, o autor explica a dinâmica das revoluções científicas ou mudanças de paradigmas como câmbios completos e drásticos, não só nas hipóteses, instrumentos e princípios, mas em todo o modelo de pensamento.

Dessa forma, dizemos com Kuhn (1962), que “é sobretudo nos períodos de crises reconhecidas que os cientistas se voltam para a análise filosófica como um meio para resolver as charadas de sua área de estudos” (p. 117). Por isso, a filosofia também pode entrar na discussão para enriquecer o pensamento e o sentido da atividade científica. De alguma forma, como uma tentativa de sair dessa crise em que a Ciência entra em determinadas circunstâncias.

4- Técnica, sentido e tecnologia

Um exemplo de crise atual são as contribuições tão novas, constantes e cambiantes, que trouxe a tecnologia e que assumimos na cotidianidade.

A técnica vem de uma palavra grega, techné, que significa fabricação ou produção, e foi utilizada para marcar um primeiro cisma epistemológico entre o conhecimento pelo amor ao saber, um conhecimento mais reflexivo e filosófico, e o conhecimento prático, o savoir-faire, algumas vezes chamado de efetivo.

Isso nos coloca perante os três pontos antes mencionado: a história, a ética e o paradigma. Explicamos com um exemplo: o genoma humano não tem nem 20 anos de descoberta, mas já agimos como se o conhecêssemos desde toda a vida. Isso quer dizer que o ser humano desenvolveu um conhecimento (que começou com o saber técnico, de fabricação – a tekné -) que fez possível, através de hipóteses e instrumentos, descobrir e determinar a posição, codificação e função de seus genes. Contudo, o conhecimento técnico da biotecnologia não para na definição e esboço do genoma. Com a definição vem também a capacidade de o manipular, de modificá-lo e aí precisaremos retornar ao conhecimento pelo amor de saber e não apenas pela técnica. Em alguns países as técnicas de manipulação genética estão sendo usadas com fins médicos como a cura de algumas doenças em fetos, e para fins estéticos, definindo a cor de olhos dos bebês ainda antes de nascerem.

Hans Jonas, um filósofo contemporâneo que propõe pensar a ciência através do princípio de responsabilidade frente aos sacrifícios que fazemos em prol do constantemente novo, rápido e fácil, adverte: “hipotecamos a vida futura em troca de vantagens e necessidades atuais a curto prazo – e, enquanto a isso, na maioria das vezes, em função de necessidades autocriadas” (Hans Jonas, Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio de responsabilidade, 2013, p. 54). Ligue os pontos e filosofe: que sentido tudo isso gera e para qual sentido nos direciona em nossa existência limitada e disruptiva?

Em conclusão, o pensamento e o desejo de conhecer tem os anos que tem a humanidade. O Ocidente reconhece a existência da Filosofia já na antiga Grécia, quando os primeiros filósofos se perguntavam pelo princípio das coisas. Obras e obras foram escritas de lá para cá e as aproximações foram se diversificando ao longo da história, derivando em arte, religião, ciência e cultura.

 A Filosofia parece ser o degrau e a consciência que toda Ciência precisa para avançar. Ela contribui com o aprofundamento do devir científico, sua história, suas relações paradigmáticas, a ética e as técnicas que permitem colocar a Ciência em favor da sociedade e não contra ela.

*Ramón Lara, mestrando em educação e psicanálise pela Universidade Federal de Minas Gerais. Formado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia em Belo Horizonte e Licenciado em Filosofia e Pedagogia pela Universidad Católica Andrés Bello de Caracas. Vitor Fernandes é graduado em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, cofundador e consultor de diversidade e inclusão na Astarte Educa, professor de filosofia e sociologia nos ensinos fundamental e médio, formação humana na educação infantil e português para estrangeiros.