Um dos personagens envolvidos na complexa logística do aborto da menina de 10 anos, o secretário estadual da Saúde do Espírito Santo, Nésio Fernandes, 38, afirma que a criança teve de passar por cima do conselho tutelar e de profissionais de saúde para conseguir ter sua decisão respeitada.
Para ele, quase todos os profissionais que a atenderam tentaram desencorajá-la a interromper a gestação. “Recebi a avaliação do obstetra do município dizendo que a criança tem pelve de 13 anos e que, por isso, podia parir. Coisa horrorosa”, diz Fernandes.
O secretário afirma que conselheiros tutelares atuam em situações como essa para protelar a idade gestacional de maneira que não reste opção do aborto no tempo adequado, resultado de uma concepção conservadora nesses grupos. “Mais da metade dos conselhos tutelares são compostos por conselheiros fundamentalistas, religiosos”, diz.
Fernandes, que é médico e evangélico da Igreja Batista, questiona ainda a alegada objeção de consciência, dizendo que isso não pode ser um impeditivo de acesso a direitos.
“O Estado vai ser mais justo quando a gente puder superar a hipocrisia de que crianças pobres precisam suportar a dor e a marca da violência ao longo de suas vidas, enquanto vítimas das classes média e alta conseguem ter acesso a serviços e a reparações.”
Acesso ao direito de abortar
“O Estado conseguiu responder de maneira muito rápida a um assunto que poderia ter um desfecho catastrófico do ponto de vista da resposta do Sistema Único de Saúde a uma situação de violência monstruosa.
O itinerário socioterapêutico da paciente revelou muitas insuficiências do sistema de proteção, mas também revelou que, quando os gestores querem resolver um problema, conseguem.”
Falta de preparo na rede do estado
“Se ela tivesse feito o aborto no Hospital das Clínicas de Vitória sem o devido protocolo, sem equipe preparada, sem capacidade de fazer todas as etapas da indução, da antecipação de parto com mais de 22 semanas, poderia ter incrementado o risco à criança.
A opção de transferi-la para Pernambuco foi o que garantiu a ela a melhor opção terapêutica. Então, a tradução da recusa do Hospital das Clínicas precisa ser muito bem cuidada para a gente não cometer injustiça, porque se tivessem realizado o aborto no hospital, talvez não teria tido o mesmo desfecho, porque existem etapas do processo de antecipação do parto que não teriam sido realizadas e poderiam gerar uma polêmica muito maior.
A injeção letal no feto não é feita no ES porque não temos profissional de medicina fetal na rede pública e privada.”
Conselhos tutelares conservadores e contra o aborto
“Mais da metade dos conselhos tutelares são compostos por conselheiros fundamentalistas, religiosos. Quando um médico faz um diagnóstico de um estupro, de uma violência, de uma gravidez em uma menor, a obrigação dele, no mesmo momento, é chamar o conselho tutelar e as forças policiais.
Então, é o conselho tutelar quem conduz nesses casos. Como existe uma concepção dos conselheiros contra o aborto, em geral, a condução desses casos é feita de maneira que, na prática, a idade gestacional seja protelada para que não reste opção do aborto no tempo adequado.
É muito comum que a abordagem no conselho tutelar, nos serviços ambulatoriais municipais, as condutas sejam conservadoras. No caso, a menina teve o diagnóstico numa sexta-feira, e o conselho tutelar foi acionado.
Na quarta-feira seguinte, solicitei informações sobre o desenvolvimento da gestação e, na quinta, recebi a avaliação do obstetra do município dizendo que a criança tem pelve de 13 anos e que, por isso, podia parir.
Coisa horrorosa. Naquele momento, determinei que a Superintendência Regional de Saúde providenciasse a imediata transferência da criança para a referência estadual do Hospital das Clínicas, o que ocorreu na sexta-feira e, no sábado, ela foi avaliada.
Com a negativa da realização do procedimento, a gente conseguiu que o serviço em Pernambuco a atendesse no dia seguinte.
Aí o que ocorre? Tanto no conselho tutelar quanto na abordagem do serviço de saúde municipal, o relato é que algumas pessoas desencorajaram o aborto. Fato que ela teve de enfrentar.
Ela foi muito determinada, ela e a avó tiveram que o tempo inteiro se determinar a essa decisão para poder garantir o respeito à decisão delas.”
Silêncio do Ministério da Saúde
“Não me constrange e não considero inadequado que o Ministério da Saúde não tenha feito pronunciamentos públicos e explícitos porque, de fato, não é a maneira de tratar o caso.
O que acontece é que o Sistema Único de Saúde vive com essa realidade de maneira cotidiana e compete aos municípios e aos estados que executam esses serviços lidar também de maneira cotidiana com isso e garantir o acesso real dessas vítimas ao seu direito.”
Hipocrisia pune os mais pobres
“A reação da ampla maioria das pessoas foi de consternação, indignação e solidariedade. O problema é que os fundamentalistas gritam muito alto. Esses setores mais radicalizados têm uma capacidade de repercutir posições e criar escândalo que é bem impressionante.
Eu acredito que é possível que o tema seja tratado de maneira madura pelos meios de comunicação, pelas instituições, pelo poder público, pelos agentes públicos.
Entendo que a gente consegue ter um Estado democrático, que de fato é mais justo quando a gente pode superar a hipocrisia de que crianças pobres precisam suportar a dor e a marca da violência ao longo de suas vidas, enquanto vítimas da classe média e da classe alta conseguem ter acesso a serviços e a reparações.
O sistema tem que funcionar para todo mundo de maneira que quem seja rico, de classe média, pobre ou humilde, que seja vítima de violência, tenha acesso aos direitos que a legislação prevê, independe de cor, de origem, de atividade econômica.”
Brasil é atrasado em relação a outros países
“Cuba, Uruguai e quase a totalidade dos países europeus já têm uma maturidade civilizatória mais avançada nesse assunto e garantem pelo sistema público de saúde o acesso a todas as mulheres que decidam realizar o aborto, em especial, as vítimas de violência.
Entendo que são experiências positivas, que precisam avaliadas, porque esses países não só garantem aborto.
Eles lidam com prevenção da violência e educação sexual de maneira mais adequada também. O acesso aos métodos contraceptivos, o acesso à educação, ao planejamento familiar, ele é mais avançado nesses países que aqui porque não existe um tabu em discutir.”
Objeção de consciência é conceito relativo
“A objeção de consciência é um conceito muito relativo, porque geralmente tem a solidez equivalente à distância do problema da vida da pessoa que tem a objeção.
Com ela, com um filho, com a mãe dela, a objeção tem uma influência muito menor do que quando ocorre com uma pessoa desconhecida, ainda mais com vulneráveis.
Não pode ser um impeditivo de acesso a direitos. Então, se a pessoa tem uma concepção religiosa ou filosófica de que tal procedimento ela não realizaria, deveria passar o caso para um profissional que possa garantir aquele procedimento.”
Objeção de consciência na política pública
“O fato de muitos estados não terem o serviço organizado, com garantia de acesso ao aborto legal e seguro bem estruturado, é muito mais um fenômeno histórico do que culpa de um indivíduo.
A culpa não é dos médicos que trabalham no Hucam, não tenho como querer responsabilizar ou querer explicar o fenômeno a partir dos indivíduos.
A política pública foi se deteriorando ao longo dos anos e não conseguiu alcançar um ponto de maturidade assistencial para garantir o acesso ao abortamento legal ou à antecipação de parto.”
Vazamento de informações sigilosas
“Existe uma investigação por parte do Ministério Público Estadual do Espírito Santo, existe uma investigação no Ministério Público de Pernambuco, existem investigações administrativas em diversas instâncias. Nós aguardamos as investigações para poder, de fato, identificar os responsáveis.”