A piora da saúde mental do brasileiro durante a pandemia de Covid-19 já é sentida no balcão das farmácias: nos cinco primeiros meses do ano, houve aumento de 13% da venda de antidepressivos e estabilizadores de humor.
Na prática, foram quase 4,782 milhões de unidades (cápsulas e comprimidos) vendidas a mais neste ano em relação a igual período de 2020, segundo levantamento inédito do CFF (Conselho Federal de Farmácia), a partir de dados da consultoria IQVIA.
O comércio dos medicamentos já tinha aumentado 17% em 2020 em comparação com 2019 -nos anos anteriores, a alta tinha sido de 12% (2019) e 9% (2018).
Um outro relatório da mesma consultoria com o Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos) aponta um aumento de receita de 18,73% nas vendas dos também chamados medicamentos para o sistema nervoso central no primeiro semestre deste ano em relação ao de 2020.
Embora várias pesquisas indiquem aumento de doenças mentais na pandemia, não há evidências robustas sobre isso. Estudos epidemiológicos apontam que, no início da crise sanitária, houve ligeira subida, mas depois os números se mantiveram estáveis até o fim de 2020.
O que explica, então, esse aumento da venda de psicotrópicos?
Para o psiquiatra Rodrigo Martins Leite, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, é fato que as pessoas estão com níveis mais elevados de sofrimento mental. E, embora isso não se traduza automaticamente em doença psiquiátrica, elas querem uma alternativa para aliviar esses sintomas.
“Há muito diagnóstico falso-positivo. A pessoa chega com um certo número de queixas e o médico já interpreta como um transtorno e introduz um fármaco. A gente [médico] também sofre uma pressão social para medicar. O cliente já vem procurando o remédio, e não orientação sobre estilo de vida, meditação, psicoterapia.”
No entanto, ele lembra que esse é um retrato que espelha a realidade de parte da população, que tem acesso a um médico e condições de comprar medicamentos.
“Estudos americanos apontam que os brancos têm mais acesso a prescrições do que as populações latinas, negras. O mesmo acontece aqui: a classe média alta tendo acesso a essas prescrições e muitas pessoas do andar debaixo, mesmo precisando muito, sem acesso a elas.”
A venda de psicotrópicos no país é feita com apresentação de prescrição médica, retenção da primeira via da receita e lançamento no SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados).
Para o farmacêutico Wellington Barros, consultor do CFF e professor da Universidade Federal de Sergipe, a pandemia tem gerado muito sofrimento psíquico por fatores como o luto pela perda de familiares, o isolamento social e as sequelas pós-Covid, a chamada Covid longa.
Um estudo do Hospital das Clínicas que acompanha um grupo de pacientes que estiveram internados por Covid-19 mostra que, nos seis primeiros meses de acompanhamento, 58,7% relatavam pelo menos um sintoma emocional ou cognitivo, como perda de memória (42%), insônia (33%), ansiedade (31%) e depressão (22%).
“Temos visto também muita depressão em jovens. Ela vinha crescendo antes da pandemia, mas agora aumentou mais ainda devido à mudança brusca nos hábitos dos adolescentes. Eles são muito gregários nessa fase da vida e, quando se viram isolados dos colegas e dos grupos, isso afetou muito a saúde mental.”
José Ricardo Amadio, coordenador do grupo de trabalho sobre farmácia comunitária do CFF, diz que, além dos jovens, chama a atenção um aumento do consumo de antidepressivos entre os idosos.
Apesar de o levantamento não contemplar esse recorte etário, ele afirma que essa é a percepção de quem está na linha de frente, atrás do balcão. “O paciente idoso sentiu muito a ausência, a falta de convívio com a família.” Leite e Barros reforçam, no entanto, que, embora as condições impostas pela Covid-19 tenham exposto as pessoas a situações de estresse extremo, nem tudo pode ser traduzido em doença mental.
“Nem toda alteração no sono, nem todo sentimento de tristeza ou solidão, ou mesmo o estresse, constituem, a priori, um transtorno em saúde mental passível de ser tratado com medicamentos”, diz Barros.
O levantamento do CFF aponta importantes diferenças regionais nas vendas de psicotrópicos no país. Acre, por exemplo, registrou o maior aumento, de 40%. Em igual período do ano passado, comparado a 2019, a alta tinha sido de 12%.
Alagoas e Amazonas tiveram 34% e 31% de aumento de vendas, ante um crescimento anterior de 20% e 17%, respectivamente.
“Há um forte componente dos determinantes sociais de saúde [nessas diferenças]. Em alguns estados, há uma rede mais organizada de assistência do que em outros”, diz Wellington Barros.
Para ele, o momento é crucial porque está em curso uma tentativa de desmontar a política mental no país que vigora desde a década de 1990.
“Está acontecendo um desmantelamento das estruturas de atendimento psicossocial no país em um momento em que elas se fazem ainda mais necessárias para enfrentar esse momento da Covid e o pós-Covid.”
O Ministério da Saúde nega o desmantelamento e diz que a meta da revisão da política é a de tornar a assistência à saúde mental mais acessível e resolutiva.
Neste mês, o Conselho Federal de Psicologia lançou o site “Saúde Mental e Covid-19” em parceria com oito entidades de profissionais da área, pesquisadores e gestores públicos de saúde.
A proposta do site é tornar-se uma ferramenta que reúna em um só lugar diversas informações, como notícias, cursos, pesquisas e legislações, sobre saúde mental durante a pandemia.
Para Ricardo Gorayeb, presidente da SBP (Sociedade Brasileira de Psicologia), do ponto de vista da saúde mental na pandemia, é possível que outras ondas de distúrbios estejam por vir.
“Tivemos distúrbios psicológicos dos profissionais da linha de frente, das famílias trancadas em casa, mas vai haver uma terceira onda de estresse pós-traumático que, nós profissionais da saúde mental, teremos que estar preparados para enfrentar”, disse ele, durante live de lançamento do site no último dia 16.