Saia justa, nomeação em meio a golpe, abraço de rivais: a história das posses presidenciais no Brasil

O Globo – Quando Deodoro da Fonseca tornou-se chefe do governo provisório e primeiro timoneiro do Brasil república, em 15 de novembro de 1889, nada se falava sobre cerimônia de posse presidencial. Ainda assim, porém, o evento histórico teve suas liturgias, como uma ata lavrada na Câmara Municipal do Rio anunciando o fim do império e a oficialização do ministério a ser comandado dali em diante pelo marechal.
De lá para cá, entre ditadores militares, governantes escolhidos indiretamente e eleitos pelo voto direto, 37 presidentes assumiram o cargo, em geral após rituais que ganharam pompa crescente. Momentos simbólicos como a assinatura de um termo chancelado por todos eles, desde o próprio Deodoro, e que hoje incluem sessão solene no Congresso, discurso à população e desfile em carro aberto.
O Rolls-Royce presidencial, aliás, merece um parêntese à parte. Nas mãos do governo brasileiro há sete décadas, desde 1952, o modelo exclusivo, com menos de 2 mil exemplares no mundo, transportou, a partir de Getúlio Vargas, mais da metade dos mandatários brasileiros em cerimônias de posse e outras raras ocasiões especiais. Ainda não se sabe, contudo, se Luiz Inácio Lula da Silva voltará a dar uma voltinha no possante de luxo no próximo dia 1º, tal qual fez em 2003, já que a equipe de transição acusou Jair Bolsonaro e companhia de terem danificado o automóvel. O (ainda) atual governo nega. As informações são do O Globo.
— A ideia é carregar de simbolismo esse momento da posse. É como acontecia em cerimônias mais antigas, mais remotas, quando a chegada ao poder dos soberanos dava-se diante da sociedade, para marcar a legitimidade daquele governante junto a sacerdotes, padres, bispos, além da própria população. É uma maneira de demonstrar força — explica Carlos Fico, professor de História do Brasil na UFRJ: — O momento em que o presidente que assume vai até o parlatório para falar à multidão que o aclama tem esse caráter simbólico, por exemplo.
A saia justa envolvendo o Rolls-Royce não deve ser a única da passagem de bastão entre Bolsonaro e Lula. A entrega da faixa presidencial, outro rito simbólico da cerimônia, não deve acontecer dentro do protocolo, já que tudo leva a crer que o atual presidente sequer se fará presente na posse do sucessor. A última vez em que algo semelhante ocorreu foi em 1985, quando o general João Baptista Figueiredo se recusou a comparecer ao empossamento de José Sarney, que sucedeu os militares ao fim da ditadura.
O golpe de 1964, aliás, também trouxe a reboque, naturalmente, uma posse inusual. Em 2 de abril, logo após anunciar que estava vaga a Presidência da República, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou ali mesmo que o deputado federal Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara, era o novo mandatário máximo da nação. O gesto, entretanto, teve pouco efeito concreto.
Além de ter permanecido no posto por apenas 13 dias — mesma duração do período como presidente interino três anos antes, após a renúncia de Jânio Quadros —, Ranieri não exerceu o cargo na prática, já que uma junta militar assumiu o comando do país até a eleição indireta que escolheu o general Humberto Castelo Branco como primeiro homem-forte do regime. Foi o próprio parlamentar, apesar de presidente figurativo, o último civil a entregar a faixa aos militares, que a fizeram passar por outros quatros nomes da caserna até o fim da ditadura.
Só dois eleitos passaram a faixa
Com a recusa de Bolsonaro, que viajou para os EUA dois dias antes da troca de governo, permanecerá inalterado o número de apenas dois presidentes eleitos desde a redemocratização a entregar a faixa em mãos ao novo mandatário. Fernando Collor até recebeu o item pessoalmente de Sarney, mas ele era, originalmente, vice de Tancredo Neves, que foi eleito indiretamente e morreu antes de assumir. Como Collor acabou sofrendo um impeachment, coube a outro vice, Itamar Franco, repassar simbolicamente o posto a Fernando Henrique Cardoso.
Oito anos depois, FHC pôde, enfim, dar a faixa diretamente para Lula. Um momento histórico não só pela ascensão de um metalúrgico sem diploma universitário ao poder, mas por representar uma transição pacífica entre adversários políticos, em um raro respiro de civilidade na história partidária brasileira. Deixou o cargo um tucano sorridente, com direito a abraço efusivo e aceno conjunto para o público que se deslocou em peso para Brasília.
Sucessora do aliado Lula, de quem havia sido ministra, Dilma Rousseff protagonizou, em 2011, uma posse marcante por outro motivo, como a primeira mulher da história a presidir o Brasil. O ineditismo gerou um dilema inesperado (e, por que não, de pouca relevância prática): quem estaria ao lado da nova chefe do Executivo no Rolls-Royce presidencial, lugar usualmente destinado às primeiras-damas? Divorciada, Dilma atravessou a Esplanada acompanhada da filha, Paula Rousseff, gesto que repetiu em 2015.
O impeachment sacramentado em 2016, entretanto, impediu que ela repetisse Lula e entregasse a faixa ao próximo governante. Assim, foi Michel Temer, ex-vice da petista, quem saudou Bolsonaro no primeiro dia de 2019, em cerimônia que também teve sua cota de cenas memoráveis.
A presença do vereador Carlos Bolsonaro no banco traseiro do Rolls-Royce durante o desfile em carro aberto rompeu o protocolo e foi vista como um recado, já que o filho de Jair, idealizador da estratégia digital da campanha — questionada pelas mentiras constantes e tom apelativo —, foi apontado como um dos principais responsáveis pela vitória do capitão do Exército. Outra quebra de expectativa veio quando a primeira-dama Michelle Bolsonaro discursou em libras ainda antes da fala do marido.
Como será a posse de Lula
O evento deve começar por volta de 14h30, com o desfile em carro aberto pela Esplanada dos Ministérios. O percurso vai da Catedral de Brasília, com primeira parada no Congresso Nacional, onde Lula e seu vice, Geraldo Alckmin, serão recebidos pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, além de outras autoridades. No plenário, Lula e Alckmin farão um juramento no qual se comprometem a “manter, defender e cumprir a Constituição da República, observar as suas leis, promover o bem geral do Brasil, sustentar-lhe a união, a integridade e a independência”. Em seguida, será assinado o termo de posse, e o novo presidente fará seu primeiro pronunciamento ao país.
De volta ao Rolls-Royce presidencial (se ele for utilizado), Lula partirá, então, para o Palácio do Planalto, onde ocorre a cerimônia da passagem de faixa, que ainda não se sabe de que modo se dará. É esperado, então, um novo discurso do petista, que se encaminha na sequência ao Palácio do Itamaraty para encontrar autoridades internacionais e outros chefes de Estado presentes.
Encerradas as liturgias da cerimônia, começará um grande show com dezenas de artistas, que se dividirão em dois palcos. Já confirmaram presença no evento nomes como Geraldo Azevedo, Gaby Amarantos, Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Zélia Duncan, entre outros representantes de diversos gêneros da música brasileira.
Essa será a última vez que a posse de um presidente eleito acontecerá em 1º de janeiro, como ocorre desde o primeiro mandato de Fernando Henrique. Uma alteração feita no Congresso Nacional determinou que, a partir de 2027, a data seja transferida para o quinto dia do mês, enquanto governadores assumirão no sexto dia. A mudança tem o objetivo de afastar a cerimônia dos festejos de fim de ano, facilitando a presença da população e de autoridades estrangeiras.