Remédio de 1.200 anos dá pistas para combater bactérias atuais

FolhaPress

Uma poção para os olhos usada há 1.200 anos pode ajudar os cientistas em sua batalha contra a resistência de bactérias a antibióticos atuais. A receita, encontrada em um tratado de medicina medieval, foi reproduzida e testada por cientistas da Universidade de Warwick, em experimento publicado na última semana no Scientific Reports, da revista Nature.

Feito à base de cebola, alho, vinho e sais biliares, o preparado se mostrou seguro para células humanas e eficaz para combater biofilmes multicelulares -colônias de microrganismos que funcionam como uma proteção para as bactérias, reduzindo a ação dos antibióticos atuais. O tártaro dos dentes é um exemplo de biofilme, mas há outros especialmente difíceis de tratar, como o de úlceras nos pés de pacientes diabéticos.

O remédio, que faz parte do “Bald’s Leechbook” -“livro de prescrições médicas de Bald”, manuscrito compilado no século 9º durante as reformas educacionais do rei dos anglo-saxões Alfredo, o Grande-, foi recuperado e testado por pesquisadores do Ancientbiotics.

O grupo foi formado em 2015 por microbiologistas, químicos, farmacêuticos, analistas de dados e medievalistas de universidades britânicas e americanas -entre elas Warwick, Nottingham, Coventry e Universidade da Pensilvânia- em busca de alternativas antigas para a resistência microbiana contemporânea.

Em culturas em laboratório, o unguento de Bald se mostrou eficaz contra cinco diferentes bactérias (Acinetobacter baumani, Stenotrophomonas maltophilia, Staphylococcus aureus, Staphylococcus epidermidis e Streptococcus pyogenes) encontradas em biofilmes que infectam diabéticos. Por causa da resistência desses biofilmes aos antibióticos atuais, a infecção pode levar à amputação dos pés, para impedir que os patógenos invadam a corrente sanguínea.

A pesquisa mostrou que o efeito antibacteriano depende de que todos os ingredientes estejam combinados, nas especificações exatas da receita anglo-saxônica, incluindo um período de ativação de nove dias. A alicina (presente no alho), por exemplo, tem ação antibacteriana, mas o bulbo sozinho não tem atividade contra biofilmes, diz a professora de Warwick Freya Harrison, coautora do artigo.

Segundo Harrison, muitos antibióticos usados hoje derivam de compostos naturais, mas o trabalho recém-publicado abre uma outra vereda para a exploração não só de substâncias isoladas mas da composição entre elas.

O foco principal do Ancientbiotics é em fórmulas medievais, mas o grupo colabora com pesquisadores que analisam remédios anteriores e posteriores, afirma Harrison: “Algo em que os especialistas em humanidades da equipe estão especialmente interessados é comparar remédios e ingredientes em textos médicos de diferentes épocas e lugares, para ver qual conhecimento foi transmitido”.

Segundo ela, não há dúvidas de que algumas das receitas do “Bald’s Leechbook” foram copiadas da medicina antiga ou têm paralelos em livros de outros tempos e povos. A biblioteca de Londres descreve fórmulas extraídas de autores gregos e romanos antigos, como Alexandre de Tralles (morto em 605).

Além do volume anglo-saxônico, que passa por sua segunda tradução, “Lilium Medicinae”, uma compilação feita em 1305 em latim por um médico francês, também é fonte para o grupo. A partir de uma versão para o inglês antigo, a especialista em manuscritos medievais Erin Connelly criou uma base de dados com as combinações de substâncias sugeridas pelo livro, que descreve cerca de 6.000 ingredientes e 359 receitas para 110 doenças.

Não é um trabalho simples, já que o texto usa palavras e grafias diferentes para os mesmos ingredientes. Funcho, por exemplo, aparece como “fenel”, “feniculi”, “feniculum”, “marathri”, “maratri” e “maratrum”, descreve um artigo da MIT Technology Review. Além disso, como pode haver ingredientes ativos diferentes dependendo da parte da planta usada, é preciso distinguir raiz, folha, seiva ou semente.

As bases de dados criadas a partir das obras medievais serão fundamentais para ajudar o grupo a identificar quais remédios históricos são os mais promissores, já que os experimentos em laboratório consomem tempo e dinheiro, diz Christina Lee, da Universidade de Nottingham, especialista no aspecto histórico do trabalho.

Lee, Connelly e o cientista de computação Charo del Genio, de Coventry, vão usar algoritmos de redes complexas para afunilar a lista de fórmulas com potencial, a partir de associações não aleatórias de ingredientes. Tanchagem (plantago), mel, romã e vinagre, por exemplo, aparecem sistematicamente combinadas em receitas do “Lilium”, mostrou o estudo feito na Pensilvânia.

Harrison diz que há um longo caminho entre as descobertas do Ancientbiotics e a produção de um remédio para uso médico: é necessário identificar as moléculas responsáveis pelo efeito antimicrobiano, descobrir qual dose delas é necessária para tratar infecções e mostrar que essa dose não causa efeitos colaterais adversos, em uma série de testes em fases no laboratório e nas pessoas.

Além disso, é preciso que mostrar que a preparação traz benefícios médicos suficientes para compensar o custo de fabricá-lo e fornecê-lo.

Mas existem alguns produtos naturais empregados para tratar infecções ao longo da história que são usados como antimicrobianos seguros e eficazes, segundo a cientista.

Um exemplo é o mel, usado pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido para tratar infecções por queimaduras. Outro é o medicamento antimalárico artemisinina, que vem do absinto vegetal (Artemisia annua) e foi desenvolvido depois que o cientista Tu Youyou encontrou um tratamento antigo chinês que o utilizava.

“O mais empolgante para nós é que o ‘Bald’ também indica absinto para tratar a malária”, diz Harrison.

As bactérias que sucumbiram ao unguento medieval
Acinetobacter baumani
associada a feridas infectadas em tropas de combate que retornam de zonas de conflito

Stenotrophomonas maltophilia
comumente associada a infecções respiratórias em humanos

Staphylococcus aureus
causa comum de infecções de pele, incluindo abscessos, infecções respiratórias, como sinusite, e intoxicação alimentar

Staphylococcus epidermidis
causa comum de infecções causadas por cateter, infecções de feridas cirúrgicas e bacteremia em pacientes imunocomprometidos

Streptococcus pyogenes
causa faringite, amigdalite, escarlatina, celulite, febre reumática e glomerulonefrite pós-estreptocócica, entre outras infecções humanas