‘Perdi 30 anos de trabalho’, diz venezuelano refugiado em Salvador…

Correio da Bahia

Enquanto enxugava as lágrimas na porta de casa, no bairro do Cabula, em Salvador, o venezuelano Jesus Ademar de Jesus, 46 anos, lembrava da vida que deixou para trás. Abraçado à esposa e ao filho de 12 anos, o homem que já foi dono de uma empresa de reparos agradeceu pela casa de quatro cômodos que recebeu para morar.

Ele faz parte do grupo de 30 venezuelanos que desembarcaram na tarde desta quinta-feira (25) na Base Aérea de Salvador, no processo de interiorização construído em parceria entre o Governo Federal, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Associação Voluntários para o Serviço Internacional – Brasil (AVSI Brasil).

Jesus chegou ao Brasil em agosto depois de perder as economias durante a crise na Venezuela.

“Sofri um assalto há três anos e me levaram tudo. Perdi 30 anos de trabalho. Agora, estamos tentando recomeçar”, afirmou.  

O avião da Força Aérea Brasileira (FAB) chegou a Salvador às 14h30, vindo de Boa Vista (RR). Eles desceram as escadas da aeronave com sol no rosto e carregavam nas malas, além de roupas a esperança de um mundo melhor. Oito deles já estão com o contrato de trabalho assinado.

                                                      Família chegou ao Brasil em agosto (Foto: Almiro Lopes/ CORREIO)

Ao descer do avião, eles entraram nas vans da FAB e seguiram até o refeitório da Base Aérea, onde fizeram a primeira refeição em solo baiano. Ainda meio atônitos com as novidades, o grupo parecia oscilar entre a curiosidade e o cansaço. Os preparativos para a viagem começaram às 5h, quando eles deixaram o abrigo em Roraima para vir para a Bahia.

Emocionado, Jesus agradeceu a oportunidade e disse que pretende usar o trabalho no Brasil para recomeçar a vida e ajudar o restante da família que ficou na Venezuela.

“Estou muito feliz. Esse é um momento de muita alegria. Minha mãe, avó e meu irmão estão na Venezuela e sei da situação que eles estão vivendo, tanto econômica, quanto de saúde e de segurança. Isso me preocupa, mas sei que aqui, trabalhando, eu poderia ajudá-los. Me sinto muito agradecido porque todos me trataram muito bem”, disse ao CORREIO.

Dos 30 estrangeiros, cinco vão ficar em Salvador: Jesus com a esposa, Nellys Guerra, 43, e o filho Cheyjarfer Romeu Guerra, 12, e dois outros venezuelanos solteiros. Os outros 25 refugiados seguiram no final da tarde para Alagoinhas, no Nordeste da Bahia. “Esse calor do povo brasileiro nos surpreendeu. A gente não esperava”, contou Nellys.

Avião saiu de Boa Vista (RR) com destino a Salvador (Foto: Almiro Lopes/ CORREIO)

 

Continua…

Trabalho

No total, seis famílias e duas pessoas solteiras integram o grupo. Oito deles já chegaram na Bahia empregados. Isso porque a AVSI Brasil conseguiu fazer uma parceria com a empresa peruana Indústrias São Miguel (ISM), produtora do refrigerante Goob, com filial em Alagoinhas e distribuidora em Salvador.

Segundo a representante regional da AVSI Brasil, Paula Leopoldo, um dos diretores da empresa foi até Boa Vista para acompanhar a seleção dos novos funcionários. Eles vão atuar como auxiliar de produção, auxiliar de marketing, mecânico de caminhões e inspeção de qualidade.

“Todos estão muito felizes com a oportunidade de poder trabalhar no Brasil e muito contentes com tudo o que está acontecendo. Para a gente é muito gratificante ver a felicidade deles, visível no olhar de esperança. Foram dois meses e meio nesse processo”, contou.

São oito contratados ao todo. Cinco famílias seguiram para Alagoinhas, e um membro de cada uma delas vai trabalhar na Indústria São Miguel. Em Salvador, além de Jesus Ademar, outras duas pessoas vão atuar na distribuidora da fábrica.

A empresa peruana surgiu na região de Ayacucho, a 554 km ao Leste da capital peruana Lima, e tem 34 anos no mercado, cinco deles na Bahia. Ela tem um centro de distribuição também em Feira de Santana. A São Miguel fabrica e vende produtos não alcoólicos, como o refrigerante Goob nos sabores Cola, Guaraná, Uva e Laranja.

Além do Peru, ela está presente também na República Dominicana, no Chile, nos Estados Unidos e em outros países das Américas. No Brasil, a fábrica de Alagoinhas tem área total de 80 mil m², sendo 25 mil m² de área construída. A planta é composta de linha de produção, áreas de estoque, suporte, manutenção, captação de água e tratamento de efluentes. Os equipamentos são os mais modernos instalados no Nordeste.

Jesus conhece a nova casa (Foto: Almiro Lopes/ CORREIO)

Recomeço

Cada família vai morar em uma casa alugada pelas AVSI Brasil, por três meses. Depois desse período, o aluguel ficará por conta dos estrangeiros. Os imóveis estão mobiliados e com cesta básica e produtos de higiene pessoal. Os móveis não precisarão ser devolvidos. Na prática, eles terão os mesmos direitos dos brasileiros, e as crianças também podem frequentar a escola pública.

A maioria dos venezuelanos que desembarcou tem entre 20 e 40 anos, mas oito crianças fazem parte do grupo. O mais jovem é um bebê de 5 meses e a mais velha uma senhora de 63 anos. Os empregados da fábrica já possuem conhecimento industrial para as funções.

Este é o primeiro grupo que parte dos abrigos gerenciados pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur) em parceria com a AVSI Brasil, em Boa Vista, na modalidade de interiorização para trabalho.

O tenente coronel do Exército, Fábio Felippe, responsável pela operação de translado dos refugiados para Salvador e Alagoinhas, contou que eles deixaram Boa Vista às 8h, fizeram uma parada em Belém (PA) para abastecimento da aeronave, e depois seguiram para Salvador. Três vans levaram os estrangeiros para o interior e uma para a capital.

“Nossa missão foi fazer o apoio logístico. A 6ª Região Militar recebeu a tarefa de acolhe-los e leva-los da base área até o local de abrigo. Cerca de 30 militares estão envolvidos nessa operação, o mesmo efetivo de venezuelanos, tudo para oferecer o melhor atendimento possível. Trouxemos equipe médica, assistente social e intérprete para ajudar no processo”, afirmou.

A operação foi conjunta entre o Exército Brasileiro, a FAB, a Casa Civil e o Ministério dos Direitos Humanos.

Entenda: crise na Venezuela começou muito antes de 2018

A situação começou a se manifestar em 2014, mas já dava sinais desde 2012, de acordo com o professor do curso de Relações Internacionais da Unifacs Felippe Ramos. Só para dar uma ideia, a economia da Venezuela pouco produz além do petróleo. Praticamente tudo que se consome no país é importado.

“A partir de 2014, há a queda do preço do petróleo nos mercados internacionais e agrava fortemente a situação. Nesse momento, o governo passa a gastar mais do que arrecada”, explica.

Naquele momento, começaram a ser propostas algumas medidas econômicas de abertura e atração de investimento estrangeiro, mas o presidente Nicolás Maduro, que sucedeu Hugo Chávez, preferiu financiar o déficit fiscal com emissão monetária.

“Ou seja, na falta de dinheiro, a gente imprime dinheiro. Com isso, o dólar paralelo dispara. O governo mantém uma taxa fixa de câmbio, mas o dólar paralelo se descola muito do fixo e a economia começa a ter uma diferença muito grande entre produtos subsidiados pelo governo e produtos importados sem subsídio”.

Assim, a inflação aumenta, os preços dos produtos disparam e o governo perde o controle do déficit fiscal. Logo, a emissão monetária não era mais suficiente para bancar o rombo: o governo passou a ter menos dólares para importar e teve início uma grave escassez na economia.

Era falta de tudo: papel higiênico, açúcar, frango, remédios, absorventes, preservativos. Nesse contexto, houve aumento de casos de gravidez precoce e surtos de epidemias de doenças que antes estavam controladas, como o sarampo. Nessa época, o salário mínimo caiu a preço real de um dólar – o mais baixo do mundo. 

“O governo perdeu a capacidade de investir na própria indústria básica que lhe sustenta: a petroleira. Segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), a inflação deve fechar o ano em 1.000.000 %”, explica o professor.

E foi assim que a vida na Venezuela se tornou inviável para os cidadãos – principalmente de classe média baixa e baixa. Em 2015, o fluxo de migrantes dispara; nos anos de 2016 e 2017, essas pessoas seguiam, principalmente, para países como Colômbia, Espanha e Estados Unidos. Mesmo tendo recebido migrantes em anos anteriores, foi só agora, em 2018, que o Brasil sentiu o maior impacto.

Desde 2012, cerca de 2,3 milhões de pessoas deixaram a Venezuela. “Em números absolutos, é a maior crise de imigrantes do mundo. É maior do que a Síria, a Líbia, o Iêmen, só que não se sentiu tanto porque muitos desses 2,3 milhões eram pessoas de classe média, que tinham acesso a recursos econômicos e educacionais”.