Mais uma carta aberta escrita contra as “heresias” do papa Francisco esta semana. Diante desse tipo de protestos, que acontecem aos montes desde que o pontífice argentino foi eleito, ele simplesmente respondeu, há alguns anos, que não os leva em consideração e sequer dá-se ao trabalho de ler a respeito. E faz bem, afinal, seria uma perda de tempo dar ouvidos a pessoas que não fazem o mínimo esforço para compreender as nuances do governo de um papa.
Mas ouso indicar um aspecto positivo nesse tipo de atitude. Ao menos essas pessoas não escondem a aversão ao atual pontífice, ao passo que, no Brasil, há padres e leigos “pios e devotos”, defensores da “modéstia” e propagadores dos documentos da Igreja – não todos os documentos, já que o critério de escolha é bem ideológico –, os quais, por causa da notoriedade nas redes sociais, escondem tal descontentamento.
Chegou a mim a informação, por exemplo, que um padre bastante conhecido de todos, sucesso absoluto nas redes sociais, que diz “respeitar filialmente o atual pontífice”, nos bastidores teria desejado que o papa atual morresse ou renunciasse. Logo um clérigo que deveria ser o primeiro, em teoria, a incentivar os seus fiéis a interceder pela missão do seu líder. E, certamente, ele não é o único. Basta observar com qual frequência os “youtubers católicos” em alta citam ao menos uma encíclica do papa Francisco durante suas “catequeses virtuais”.
Existe uma “idolatria curial” e um endeusamento de certas figuras cardinalícias que demonstram todo esse infantilismo dentro do qual está imerso grande parte desse catolicismo neo-ultramontanista. Levadas por uma estranha nostalgia em relação ao “catolicismo de corte” dos inícios do século 20, essas pessoas tratam com total naturalidade as pompas dos purpurados, em vez de aplaudir a cultura da austeridade que papa Francisco difunde não somente em suas mensagens, mas através da reforma in capite et in membris que promove dentro da própria instituição que conduz.
Se vissem o que nós vemos aqui em Roma, talvez muitas pessoas mudariam de opinião: e aqui eu falo desde famosos prelados simpatizantes da maçonaria àqueles – queridinhos dos americanos e dos brasileiros – que desfilam com seus super carrões importados pelas ruas da cidade.
Uma das afirmações dos 19 signatários da carta aberta que, já na introdução, acusam o Francisco de “incorrer na heresia”, é que ele “sequer cita a questão do aborto em suas colocações”: uma alegação própria de quem nunca leu sequer um discurso do pontífice argentino ao longo dos seus mais de 6 anos de pontificado. E são justamente esses, desprovidos de qualquer honestidade intelectual, que são exaltados por tantos católicos brasileiros como sendo “pessoas de reta intenção”, e que o fazem por “amor à Igreja”.
O dia que alguns desses “católicos famosos”, que abarcam milhares de seguidores em suas redes sociais, promoverem um estudo sério sobre a Laudato si’, por exemplo – a encíclica mais odiada pelos católicos ultraconservadores, os quais desconsideram a importância desse documento – talvez eu acreditarei nesse “amor filial ao papa” que muitos deles dizem nutrir. E então, que tal propuséssemos a eles que façam um curso virtual a respeito?
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.