A História Antiga às vezes confunde realidade e fantasia, difíceis de se distinguir. É o que aconteceu com o terceiro imperador de Roma, conhecido como Calígula. Até as crianças conhecem sua curiosa e emblemática história do amor que nutria por seu cavalo preferido, chamado Incitatus (Impetuoso). Chegou a se apaixonar a tal ponto por ele que até o nomeou Cônsul da Bitínia. Contam que era uma afronta ao Senado e às Instituições que desprezava como déspota absoluto.
Seu cavalo era de corrida e na noite anterior a sua competição exigia um silêncio absoluto da cidade de Roma para que não incomodassem o sono do animal, com quem o imperador dormia. O castigo a quem ousasse interromper o silêncio era a pena de morte. O cavalo era na realidade o verdadeiro imperador com poderes absolutos. Verdade ou não, é interessante conhecer a História Antiga que foi forjando a Moderna através dos séculos para ver o que Humanidade conquistou em matéria de liberdade e como as possíveis loucuras de nossos governantes são brincadeira ao lado das loucuras dos imperadores e reis despóticos e absolutistas do passado.
Com todas as lacunas de nossas frágeis democracias, estamos a milhares de anos-luz do que foram os impérios antigos e suas arbitrariedades. Mas isso de deve, ao mesmo tempo, à resistência através dos séculos que o Homo sapiensimpôs aos poderes ditatoriais e como aumentou os espaços da democracia. Os pessimistas irredutíveis continuam gostando da célebre frase do escritor e militar espanhol do século XV, Jorge Manrique: “Todo tempo passado foi melhor”.
Sem necessidade de ser otimistas nos tempos em que vivemos, a verdade é que, objetivamente, poderíamos dizer que, pelo contrário: os tempos passados sempre foram piores do que os de hoje. Por isso, é importante que nas escolas se ensine a História Antiga, para entender melhor e apreciar os saltos que a Humanidade deu à procura de uma dignidade maior das pessoas, de uma visão mais clara dos direitos humanos que abarquem todos, e do direito da sociedade a compartilhar o poder com os políticos.
Somente para lembrar os saltos para melhor da história humana, basta recordar que, por exemplo, nos tempos de Calígula e até séculos depois, os pais tinham o direito de vida e morte de seus filhos ao nascer. Podiam concedê-los o direito à vida ou, se não gostassem, podiam sacrificá-los. O estatuto dos direitos da infância à vida e à necessidade de ser respeitados não tem cem anos. Por sua vez, a mulher há menos de um século era mais um objeto nas mãos do homem do que uma pessoa com direitos. Na Espanha, há pouco tempo as mulheres não podiam viajar sem a permissão de seus maridos, estudar na Universidade, ter uma conta corrente. Sem contar com os avanços da ciência e da medicina que nos permitem viver mais do que nunca, demos saltos gigantescos na política e nas ciências sociais. Hoje a palavra escravidão é condenada e ninguém pode ser discriminado por suas crenças e seu gênero nos países que chegaram a um certo grau de democracia e respeito pela individualidade.
Isso quer dizer que podemos nos deitar nos louros e deixar os políticos em paz mesmo quando pretendem promover seu cavalo? Não! Justamente porque conseguimos o que a Humanidade não conseguiu em séculos, devemos ser mais resistentes e críticos com as tentações dos governantes de querer voltar aos tempos dos absolutismos em que as feras em seus instintos mais primitivos eram deixadas livres. Foram a resistência da sociedade, as lutas pelas liberdades que custaram muito sangue, o que nos permite hoje desmentir o escritor espanhol e dizê-lo que, apesar de tudo, hoje estamos melhor do que ontem.
Mas cuidado, porque vivemos um momento especial e difícil em que os cavalos transformados em cônsules e mais mimados do que as pessoas, parecem andar soltos e faladores com saudades dos tempos dos imperadores romanos. Porque se é verdade que nunca estivemos melhor, também é verdade que desabar ao abismo é mais rápido do que continuar subindo, com esforço e luta, à custa das conquistas democráticas. Sempre existe a tentação, aberta e latente de querer voltar a um passado em que os loucos ao modo de Calígula chegam a nos parecer até engraçados e divertidos.