Daniel Leite
Tradicionalmente, fatos inusitados marcam as disputas eleitorais. E podem influenciar diretamente a dinâmica do voto. A princípio, não era fácil imaginar que o espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, protagonizado pela atriz trans Renata Carvalho, pudesse se transformar neste tipo de episódio, capaz de agitar os bastidores da política pernambucana. Mas a proibição da peça no Festival de Inverno de Garanhuns, por parte do Governo do Estado, e a consequente guerra judicial em torno da exibição do espetáculo permitiram que o debate tomasse uma outra dimensão, que merece uma leitura aprofundada.
A religião, que sempre foi marca de nossa identidade cultural, vem aumentando sua influência nos espaços de poder. As bancadas evangélicas crescem, carregando consigo pautas polêmicas, sempre em nome da vontade divina. Cultos são realizados dentro de casas legislativas e crucifixos continuam exibidos em plenários, demarcando um território que foi conquistado desde o descobrimento do Brasil.
Em Pernambuco, esta relação entre política e religião também está mais intensa. Tanto que o governo cancelou a peça estrelada pela trans no FIG por conta “da polêmica causada pela atração e da possibilidade de prejuízos das parcerias estratégicas e nobres que o viabilizam”. Veja só. O Estado, em sua concepção mais abrangente, admite que, por pressões de ordem ideológica, vetou uma expressão artística.
Se a polêmica se encerrasse neste ponto, sua repercussão poderia causar certo desconforto ao governo, mas nada tão grave ao ponto de ameaçar a turbulenta estabilidade do jogo eleitoral. Porém, a sucessão de intervenções judiciais inflamou ainda mais os ânimos dos que querem banir a apresentação. E, com isso, a confusão pode tomar outros rumos.
Hoje, a Assembleia Legislativa de Pernambuco é comandada interinamente por um pastor, o Cleiton Collins, desde a recente morte do presidente da Casa, Guilherme Uchoa. Aliado do governador Paulo Câmara, ele é o parlamentar mais votado da Casa e, por isso, seu apoio eleitoral pode, sim, fazer a diferença. O deputado pertence, inclusive, ao PP, partido que andou ameaçando deixar a base aliada do governo, caso não seja contemplado com mais espaços e indicações.
Diante deste imbróglio, o evangélico lançou um vídeo contra a liberação da peça. Nele, citou o discurso feito pela cantora Daniela Mercury, no próprio FIG, criticando a censura do governo. O vídeo diz que a cantora está “evocando demônios” e mostra cenas de brigas no show da baiana.
“Pernambuco é do senhor todo poderoso, criador do céu e da terra e de Deus. Não vamos aceitar a forma como querem impor contra a fé da maioria dos brasileiros, com peças como essa, vexatória. Entramos com um pedido de desagravo para o procurador e o desembargador e se não for aceito vamos até as últimas instâncias. Vamos continuar lutando para essa peça ser barrada não só em Pernambuco quanto no Brasil inteiro”, afirma Cleiton Collins.
Ele chegou a comemorar, nas redes sociais, a decisão judicial que proibiu novamente o espetáculo no FIG, na noite desta sexta (27). Porém, uma nova determinação do TJPE obrigou a reinclusão da peça à programação do festival. Insatisfeito, o parlamentar passou a pressionar o próprio governador Paulo Câmara, em busca de uma solução. Collins compartilhou uma foto do governador com um apelo, assinado pelo “Movimento Cristão de Pernambuco”. “Governador Paulo Câmara, mantenha sua decisão de tirar a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” do Festival de Inverno de Garanhuns. Ela é um desrespeito à fé cristã!”, diz o post.
“Temos que nos posicionar como sociedade civil e mostrar ao Tribunal de Justiça de Pernambuco que nós somos contra. Se você concorda e não quer que o governador atenda esta decisão, compartilhe!“, completa o deputado, em um outro texto divulgado nas redes.
A postura traduz o alcance da polêmica. E, neste momento, vem a provocação. O grupo do senador Humberto Costa (PT) quer fazer parte da Frente Popular para que ele possa se candidatar à reeleição. O argumento, para isso, é que o governador se esforça para se integrar ao bloco de partidos que se situam no campo da esquerda. Ele acredita que esta aliança é importante para fortalecer as pautas progressistas e defender o legado do ex-presidente Lula. Mas, como dividir um palanque eleitoral com figuras que marcham no sentido contrário? Como dizer que existe uma convergência ideológica neste caso?
Desculpe. Mas não pude deixar de lembrar do beijo gay presenciado pelo próprio Lula, durante um ato em sua defesa, em janeiro deste ano. Na ocasião, se limitou a rir e não pareceu nada desconfortável. Em 2004, por exemplo, ele criou o programa “Brasil sem Homofobia”. Em 2010, inaugurou o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT, só para dar alguns exemplos de sua postura diante deste tipo de temática.
Pois. Em uma eleição que deve ser marcada por embates de cunho radicalmente ideológico, qualquer posicionamento pode influenciar o jogo. E vai, claro, ser usado pelos atores que fazem parte desta engrenagem para situar o eleitor. Portanto, é preciso muito cuidado.