*Por Cláudio Dantas, na Crusoé — Na última terça-feira 14, durante evento em São Paulo, Jair Bolsonaro voltou a atacar o sistema eleitoral. Disse que teria vencido no 1º turno em 2018 e reagiu a uma fala de Alexandre de Moraes, novo presidente do TSE, que ameaçou cassar o mandato de quem divulgar fake news. “Por que quem duvidar do sistema eletrônico vai ter registro cassado e ser preso? Sou obrigado a confiar? Eu posso apresentar falhas? Posso dizer, como foi em 2014, que no meu entendimento técnico o Aécio ganhou? E eu, com documentação que tenho do próprio TSE, falar que ganhei no 1º turno? Não posso falar isso? Vão cassar o meu registro?.”
A pergunta de Bolsonaro é mais do que retórica. Mostra o medo evidente de vir a perder no tapetão. Desde que Alexandre de Moraes incluiu o presidente da República em diferentes inquéritos que apuram, entre outras coisas, ataques ao sistema democrático e a divulgação de fake news contra o sistema eleitoral, seus auxiliares passaram a considerar o risco de que o registro de sua candidatura acabe anulado pelo Tribunal Superior Eleitoral, a partir do pedido de impugnação de alguma campanha concorrente. Esse medo aumentou há algumas semanas, depois que a Segunda Turma do Supremo resolveu confirmar, contra decisão de Nunes Marques, a cassação do mandato de Fernando Francischini, decidida pelo TSE.
Em seus votos, Gilmar Mendes e Edson Fachin enviaram recados a Bolsonaro. “A manifestação do Fachin era esperada, mas Gilmar é considerado um aliado do Planalto. Isso nos assustou”, disse a Crusoé, em caráter reservado, um integrante do núcleo da campanha. Mas o que o decano disse de tão relevante? Que o “discurso de ataque sistemático à confiabilidade das urnas não pode ser considerado como tolerável no estado democrático de direito, especialmente por um pretendente a cargo político com larga votação” e que “tal conduta ostenta gravidade ímpar, que pode comprometer o pacto social em torno das eleições”.
Não restam dúvidas de que Gilmar falava de Bolsonaro e não de Francischini, que foi condenado por alegações de fraude que fez durante uma live, em 2018, cerca de meia hora antes do fechamento das urnas. A cassação só veio ocorrer 8 meses após sua condenação numa ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), por “abuso de poder” — precisamente, pelo uso indevido de meios de comunicação social. Até então, o TSE só considerava meio de comunicação o rádio e a TV, que são concessões públicas. A partir de agora, o enquadramento também vale para transmissões na internet ou via redes sociais – coincidentemente, para quem acredita que haja coincidências em Brasília, os canais preferidos de Bolsonaro.
De acordo com a advogada Anna Paula Mendes, professora de Direito Eleitoral do IDP, o TSE acertou ao considerar a internet um meio de comunicação. “Eu sempre defendi essa tese, que agora foi pacificada pelo tribunal. A internet não pode ser terra sem lei e a história recente, com a eleição de Donald Trump e o escândalo da Cambridge Analytica (no caso do Brexit), nos mostrou que não podemos ter mais uma visão inocente. A internet pode ter efeitos danosos, a desinformação é um grande desafio.” Ela ressalta que, ao caracterizar o abuso, o TSE focou mais na “reprovabilidade” do ato de Francischini, e “não tanto na aritmética”. Ou seja, para os ministros bastou a conduta danosa, sem a necessidade de se comprovar se a fala do deputado alterou o resultado do pleito. “O ideal é que se balanceie o critério da reprovabilidade com o impacto, porque é um problema você destituir um mandatário eleito. O desejável é que a aplicação seja extremamente excepcional.”
O ministro Gilmar Mendes, do STF: voto surpreendeu e assustou bolsonaristas
A advogada lembra ainda que, quando Francischini foi condenado em outubro de 2021, o TSE também julgou a AIJE contra a chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão por suposto disparo em massa de mensagens. Embora tenha arquivado a ação, os ministros destacaram, já naquela ocasião, que tal prática poderia ser enquadrada como “uso indevido dos meios de comunicação social”.
Esses elementos só reforçam a impressão de que as condições para um pedido de anulação do registro da candidatura de Bolsonaro estão dadas, diante dos crimes já expostos, dependendo apenas de uma condenação que decorra das investigações tocadas por Moraes. No mês passado, o ministro unificou o inquérito sobre ataques de Bolsonaro às urnas com outro que apura a atuação de uma milícia digital destinada a minar a democracia. Um dos episódios investigados é justamente a live presidencial de 29 de julho de 2021, repleta de ataques e fake news sobre as urnas eletrônicas. A transmissão foi feita via YouTube e também pela TV Brasil, o que torna a situação do presidente ainda mais grave.
Para integrantes da assessoria jurídica da campanha de Lula, a impugnação do registro da candidatura de Bolsonaro — que, no jargão jurídico, significa o pedido de anulação, não a anulação em si — é certa, embora quase ninguém acredite, hoje, que os ministros do TSE terão coragem de impedir a participação do presidente da República na eleição. “Eu defendo que a gente vá para cima, pois não podemos correr o risco de que Bolsonaro seja reeleito, mas os próprios ministros nos desaconselham a fazê-lo”, diz um dos principais advogados do Grupo Prerrogativas, que atua como um braço jurídico do próprio PT. “O Ministério Público está com Bolsonaro. O PGR serve a seus interesses políticos e eleitorais. A Polícia Federal foi capturada, assim como outros órgãos de fiscalização. Não há como viabilizar uma investigação séria contra o presidente hoje. Não temos condições de derrotá-lo nas cortes. A maioria dos ministros está interessada em não desagradar ao Planalto, para terem influência na nomeação dos próximos ministros do TSE”, completa o advogado.
Um ministro do TSE, que também pediu anonimato, confirmou ser improvável a anulação. “Não acho que esse pleito vá ser resolvido no VAR. Na polarização em que vivemos, não acredito que o TSE possa retirar um player do jogo com uma decisão judicial voluntarista”, diz. Questionado sobre a decisão do tribunal que, em 2018, impediu Lula de recorrer, esse ministro diz que “havia um fato objetivo”. “Ele estava condenado em 2º grau e a lei dizia que ele não podia disputar a eleição. Não havia margem de dúvida. Agora, no país polarizado como ficou, intervir para tirar qualquer um dos candidatos teria conotação antidemocrática. Portanto, não dá para tratar como questão puramente técnico-judicial. Acho que o TSE tem de intervir apenas para que o jogo seja o mais limpo possível.”
Ele está certo. Impedir Bolsonaro de concorrer é inviabilizar sua própria derrota, já traçada pelas pesquisas de opinião. Com índice de rejeição altíssimo, o presidente sabe que provavelmente será vencido nas urnas e, por isso, provoca o TSE a tomar uma medida arbitrária, legitimando-se como vítima e fortalecendo a própria narrativa golpista. Na Terceira Via, porém, há quem flerte com o tapetão, visto como único meio de romper a polarização entre Bolsonaro e Lula. Mas o resultado é imprevisível. Se tucanos e emedebistas sonham com o crescimento de Simone Tebet no vácuo de Bolsonaro, aumenta também o risco de que o segundo turno termine numa disputa entre Ciro Gomes e o próprio Lula. Seja de quem for o pedido de anulação, se ele prosperar será uma aventura inconsequente, com repercussões muito maiores do que as simplesmente eleitorais.
Há ainda a questão militar. As Forças Armadas são uma sombra que vai pairar sobre o exame, pelo TSE, da impugnação. Outro ministro da Corte eleitoral ouvido pela reportagem reconhece que, na disputa pelo controle da narrativa, o TSE acabou alimentando o discurso de desconfiança dos militares bolsonaristas, legitimados como parte do processo eleitoral. Ele pondera, porém, que uma resolução aprovada pelo tribunal em 2019, na gestão de Rosa Weber, já havia oficializado as Forças Armadas como uma das entidades fiscalizadoras das eleições, em razão do apoio de Raul Jungmann e de Sergio Etchegoyen contra os ataques às urnas eletrônicas, nas eleições de 2018. Esse ministro também defende o convite feito por Luís Roberto Barroso para que os militares integrassem a Comissão de Transparência Eleitoral, que comporta outros 11 representantes, entre integrantes da Polícia Federal, do MP, universidades, CGU, Congresso etc. O problema, diz ele, é que as Forças Armadas, no caso o então ministro da Defesa, Braga Netto, “traiu a boa-fé do TSE”. “Além de ter enviado 80 questionamentos às vésperas do recesso judicial, ainda vazou para Bolsonaro as recomendações feitas e que eram tratadas com o sigilo devido. Ele deu munição ao presidente e arrastou as Forças Armadas para o comitê de campanha.”
No geral, a maioria dos ministros do TSE e do STF compartilha da visão de que não há risco real de rompimento institucional, apesar da ameaça de um novo 7 de setembro. “Para além da retórica, eu presto atenção em outras variáveis. A sociedade civil está mobilizada e apoiaria um quebra da legalidade? Não. A imprensa apoiaria? Não. O empresariado deixaria virarmos um pária internacional? Também não. Os EUA não têm interesse nisso. Ou seja, os fatores materiais não estão do lado dos golpistas, ainda que eles existam”, comenta um ministro do Supremo. Sobre o risco de invasão dos prédios públicos nos protestos bolsonaristas convocados para o 31 de julho, ele diz que todas as providências estão sendo tomadas, numa articulação entre a divisão de segurança do STF, as polícias legislativas e a PM do Distrito Federal. “O Brasil é um avião, relativamente seguro, atravessando uma forte turbulência. Alguns membros da tripulação, se não conseguirem aterrissar onde querem, vão tentar jogar o avião no chão. Mas tenho certeza que aterrissaremos em segurança”. A guilhotina, no entanto, não será desarmada depois das eleições de outubro. O medo de Jair Bolsonaro não é apenas o de ser impugnado, mas também o de ser preso. Já aconteceu com um ex-presidente da República.
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*Cláudio Dantas é jornalista e colunista de O Antagonista e da Revista Crusoé