Por Gilmar P. da Silva SJ
Pokémon GO?! Esse é um fenômeno interessantíssimo e já adianto que sim, esse colunista de pouco tempo livre tem capturado criaturas digitais entre idas e vindas dos seus lugares rotineiros. Não se trata de mais um joguinho ou simples alienação. Parece que algumas análises que recebem destaque tendem a lançar um olhar simples, dividido entre bom e mau, e há mais coisas para serem consideradas.
Muitas pessoas não têm noção do que é o jogo e muito menos do que ele trata. Pocket Monsters ou Poketto Monsutā (literalmente, monstros de bolso) começou como uma espécie de jogo eletrônico de RPG desenvolvido pela empresa Nintendo em 1996 e se tornou anime em 1997. Sua história narra a saga de um menino, inicialmente com 10 anos, chamado Ash. Ele sonha em se tornar um Mestre Pokémon e ganha um monstrinho meio teimoso, Pikachu, que não gosta de ser abrigado em sua bola (poké ball) – instrumento capaz de capturar pokémons. Para tanto, junto de seu novo amiguinho, Ash tenta capturar o maior número dessas criaturas, algumas livres e outras mais, que são acompanhadas de seus treinadores, em duelos. As batalhas exigirão habilidade dos pokémons e seus donos, o que poderá fazer com que os primeiros evoluam para formas mais complexas e poderosas. Em seu trajeto, Ash e Pikachu passam por inúmeras aventuras, fazendo novos amigos e combatendo planos de equipes más que, inclusive, querem dominar o mundo.
Continua…
Inicialmente como uma espécie de RPG eletrônico, o jogo chegou a um novo patamar com Pokémon GO. Não se trata somente de um videogame, ele ganhou o mundo presencial. O jogo, utilizando-se do GPS dos smartphones, localiza o jogador e espalha as criaturas digitais aleatoriamente na cidade. Para saber onde elas estão é necessário guiar-se pelo mapa no celular e caminhar, fisicamente, pela cidade até encontrar uma. Quando encontradas, obviamente não podem ser vista a olhos nus, mas, com a câmera do celular ligada, podem ser visualizadas na tela do aparelho como se estivessem do lado de fora. Trata-se de um novo tipo de imersão em que as realidade atual e virtual se imbricam e se sobrepõem. O personagem que o representam no jogo e você se tornam uma só coisa; o primeiro só caminha quando o segundo caminha.
De alguma forma, o jogo tem algo de religioso. Muitas crenças trabalham com a ideia de um mundo espiritual, repleto de criaturas que são invisíveis aos nossos olhos. No jogo é a mesma coisa, mas dessa vez poderão ser vistas pelo celular e, mais que isso, capturadas. Você passa a controla-las. O que é muito interessante, afinal, se o humano não tem domínio sobre o mundo espiritual, ele o tem, parcialmente, sobre o digital. E como numa religião, há nomes e conceitos muito próprios que somente os iniciados possuem. Quem não conhecia a franquia e começou agora com o novo jogo é visto por quem já o acompanhava desde a infância como um neoconvertido que não conhece as escrituras, a história de sua fé e seus códices.
Muita gente cresceu vendo a série que chegou ao Brasil no fim da década de 90, completando 17 anos de exibição em terras tupiniquins em 2016. Para muitos, desse modo, jogar Pokémon GO faz reviver a infância e seus sonhos, embalados outrora pela animação japonesa. O resgate das figuras da infância tem sido algo recorrente. Há pouco tempo atrás, um adulto que se ligasse no universo geek, era chamado pejorativamente de nerd. Agora tal estética parece ter se tornado objeto de consumo popular. A noção de que algumas animações, HQs e filmes de heróis não são para crianças, mas foram feitos para adultos, já está difundida, mudando a perspectiva de que aquele que os consome é alguém que não cresceu. De fato, muitas dessas produções são riquissimamente elaboradas, envolvendo mitólogos, semioticistas, linguistas etc., embora também tenham algo do fantasioso e da brincadeira, próprios da infância. Há quem se relaciona com esses produtos midiáticos de forma lúdica, mas adulta, e outros não. Nota-se no hodierno a dificuldade de se assumir adulto e que as estéticas infantis têm sido assumidas como valor, tocando até mesmo a política e a vida sexual. Basta olhar os protestos com pessoas vestidas de Batman ou Power Rangers e o uso de um patinho de borracha inflável pela FIESP, basta escutar tantas músicas desejando a “novinha” e a erotização da criança. Ser chamado de velho não é visto mais como vivido e experiente, mas como decrépito. Só que numa sociedade que todo mundo é jovem não há políticas para os realmente jovens, além das relações afetivas naufragarem porque alguém deve assumir suas responsabilidades (sinal de adultez).
Tudo o que se torna sucesso divide opiniões e estamos numa época de polarizações. Foi assim, recentemente, com a série Game of Thrones, sucesso mundial que inundou as redes sociais digitais com os que o adoram e os que não viram e se orgulham disso. O mesmo ocorreu entre “coxinhas” e “petralhas” até a exaustão. Parece que o senso de pertença e a insegurança do espaço intermediário, que, justamente por estar num “entre”, não tem contornos definidos, faz com que os extremos tragam a sensação de segurança ou estabilidade. Assume-se uma postura pela radicalização que representa e pela facilidade que isso implica para o intelecto. É claro que há outras razões e motivos para analisar mais profundamente esse fenômeno, mas o que interessa aqui é o amor e o ódio ao jogo que catalisa os estado de polarização da sociedade atual. Parece que o que menos importa é o aplicativo, mas marcar uma posição contra ou a favor de algo, seja lá sobre o que for. Basta ver que muitos dos que o rejeitaram são famigerados jogadores de Candy Crush. Há de se ter uma opinião sobre tudo, fazer juízo moral, assumir um posição e se agrupar em um dos polos da discussão – eis o ritmo das redes sociais digitais.
Estando na rua com o celular, interagindo digital e físico, embora haja imersão o suficiente para distrair a pessoa e ser até roubada, há também um novo modo de apropriar-se dos espaços urbanos e ocupar a cidade. A necessidade que circular imposta pelo jogo pode criar novas experiências até mesmo sobre o bairro em que se vive pela necessidade de transitar por ruas que antes não se passava. As novas paisagens e os lugares visitados têm a potência de gerar outra consciência. Quem caminha com os olhos no celular começa a se atentar para a irregularidade das calçadas ou até mesmo para a beleza de grafites que adornam muros pelos quais se passa e não se vê. Não se trata só de bem estar físico tirando adolescentes de casa, há um novo modo de socialização. Já se pode, inclusive, fazer amizades novas nas paradas onde se obtém itens para o jogo, as pokéstops.
Não se trata, pois, de olhar Pokémon GO só como a nova febre mundial, sintoma de uma doença de um mundo em crise em que o virtual substitui o real e aliena as pessoas. Com sinceridade, essa visão já está ultrapassada porque cria oposições entre duas realidades não antagônicas, porque o virtual não é uma mentira, como o mito não o é. Além do mais, trás a limitação de considerar o usuário na categoria de objeto manipulável, como se fosse um mero receptor facilmente programável. Já se sabe que a recepção de algo nunca se dá como o emissor deseja e que há sempre uma boa dose de entropia em cada sistema. Sistemas complexos pedem para serem lidos complexamente.
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