G1
O ministro Luiz Henrique Mandetta vinha sendo saudado como oásis de racionalidade e determinação no combate ao novo coronavírus, fonte de luzes num governo contaminado pelas trevas, pelo desprezo à ciência, onde o próprio presidente, chamado de “cético-chefe” pela imprensa internacional, se tornou um risco sanitário. Pois ontem Mandetta cometeu o maior erro de em sua gestão à frente da pasta da Saúde – um erro que deverá custar a vida de milhares de brasileiros.
Como resultado de um acordo político costurado pelos militares para garantir sua permanência no cargo, Mandetta aceitou relaxar as diretrizes para o distanciamento social no país. Ao final de uma reunião tensa que sucedeu os boatos de demissão, afirmou que o governo “se reposiciona” para enfrentar o problema.
Durante a tarde, o ministério baixou normas em que estabelece três níveis de isolamento e aceita, nas cidades com mais da metade do atendimento médico disponível, o que chama de “distanciamento social seletivo”, situação em que apenas idosos e demais grupos de risco são proibidos de circular livremente. Pode ter sido uma medida eficaz para atender demandas políticas, mas a ciência estava ausente da reunião. O resultado deverá ser dramático.
Todas as tentativas de adotar estratégias do tipo no mundo deram errado. Itália e Estados Unidos desprezaram o avanço da Covid-19 quando havia poucos casos, apenas para ser engolfados por um crescimento incontrolável poucos dias depois. Depois de ensaiar um modelo similar ao proposto pelo governo brasileiro, o Reino Unido voltou atrás e a partiu para o isolamento draconiano, o “lockdown”.
A Holanda, que apostava numa postura mais permissiva de contágio para tentar tornar parte da população imune e deter a circulação do vírus, se viu obrigada a proibir eventos e fechar escolas e restaurantes até o final do mês ante a escalada nos casos. “Fiquem em casa tanto quanto possível”, afirmou o premiê Mark Rutte.
O Japão, que também resistiu a medidas mais drásticas, declarou estado de emergência para impôr o isolamento radical em seis regiões metropolitanas. Mesmo a Suécia, que ainda evita manter os cidadãos em casa, passou a adotar normas duríssimas de distanciamento, impraticáveis em países de cultura menos glacial.
O crescimento exponencial do início da curva epidêmica não perdoa atitudes lenientes. Números aparentemente baixos no início se multiplicam rapidamente e, em questão de dias, bastam para abarrotar hospitais e UTIs, como se viu em Milão e em toda a região da Lombardia, a mais atingida pela epidemia na Itália.
É natural que a resposta ao vírus tenha de levar em conta condições locais e que nem toda região de um país continental como o Brasil deva estar sujeita às mesmas regras. Mas o critério adotado pelo Ministério da Saúde é absurdo, para não dizer criminoso. Várias outras variáveis teriam de ser levadas em conta para garantir a preservação de vidas nas regiões menos atingidas.
A primeira, e mais óbvia, é a restrição a viagens. Enquanto houver circulação livre, um único infectado vindo das áreas mais críticas pode criar um foco com milhares de casos, como aconteceu em cultos religiosos na Coreia do Sul e na França. Para conter o vírus em Wuhan, o epicentro da pandemia, o governo chinês passou a monitorar todas as entradas e saídas da cidade e da província de Hubei. Em postos de estrada e estações de trem de todo o país, termômetros capazes de detectar sinais de febre à distância se tornaram ubíquos.
A Covid-19 se espalhou de uma única cidade para toda a China em apenas 30 dias. No final de janeiro, depois de muito vacilar, o governo chinês decretou enfim o “lockdown” em Wuhan e noutras 15 cidades. Depois estendeu medidas de isolamento a todas as províncias. Nem todas foram submetidas ao mesmo rigor, mas passou a haver monitoramento rígido do transporte, para frear a contaminação.
A segunda medida a adotar, e a mais importante, é ampliar e disseminar a capacidade de testes. O objetivo é isolar quem estiver contaminado e rastrear todos os seus contatos. Na China, isso foi feito em todas as cidades que não estavam sujeitas às mesmas restrições que os principais focos da pandemia (leia mais aqui).
Na Itália, foi a ampliação da capacidade de testes que garantiu o perfil menos devastador da epidemia no Vêneto do que na vizinha Lombardia. Mesmo sem atingir a sofisticação de rastramento da Coreia do Sul ou de Cingapura, os venezianos trataram de identificar a maior quantidade possível de casos, mesmo aqueles com sintomas leves, e de isolá-los, além de rastrear todos os contatos. Aplicaram, até o final de março, quase 2 mil testes para cada 100 mil habitantes, o dobro da Lombardia. A letalidade (mortes por casos confirmados) ficou abaixo de 5%, ante quase 16% na região vizinha.
O relaxamento do isolamento social, sem monitoramento dos transportes nem uma capacidade de testes robusta, não passa de uma quimera. A Covid-19 é uma doença insidiosa, que pode ser transmitida por quem aparentemente não apresenta sintoma nenhum. A infecção pode levar até duas semanas para manifestar os primeiros sintomas. Deter o vírus significa saber quem são esses pacientes assintomáticos e isolá-los até da própria família.
O Brasil já tem sido leniente na aplicação das normas de distanciamento social impostas até agora. Um levantamento com base na localização de celulares sugere que elas têm sido cumpridas por pouco mais de 50% da população. O Reino Unido, que mal começa a deter o vírus, reduziu por volta de 73% dos contatos, de acordo com um estudo recente. Nas regiões da China que obtiveram êxito para barrar a disseminação, tal redução foi superior a 85%.
O desafio por aqui, portanto, ainda é enorme. Em especial, em favelas ou regiões de maior adensamento dos grandes centros urbanos – para cuja população precisará haver garantia de sustento durante um período que se anuncia longo.