Um projeto de lei que altera pontos no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), entregue pelo presidente Jair Bolsonaro à Câmara na terça-feira, 4, prevê que motoristas flagrados sem a cadeirinha para crianças nos bancos traseiros deixem de ser multados. Eles passarão a receber somente advertência.
As mudanças dobram ainda o número de pontos para a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de 20 para 40. A carteira de Habilitação passa a ter validade por 10 anos. E o projeto propõe também o fim da exigência de exame toxicológico para motoristas profissionais.
O jornal O Estado de S. Paulo conversou com Pedro de Paula, coordenador executivo da Iniciativa Bloomberg para a Segurança Global no Trânsito, que condenou as mudanças. Para o pesquisador as novas regras são a “receita para tragédia” e podem elevar número de mortos e feridos, o que vai levar a um “gasto monumental” para o Sistema Único de Saúde (SUS).
“Hoje no Brasil 60% dos leitos de UTI são ocupados por acidentados de trânsito. Isto é uma loucura. Caso esse projeto de lei seja aprovado, um monte de gente que poderia estar na UTI por questões que não podem evitar, ou seja, que não são acidentados de trânsito, vai deixar de estar. É uma legislação que, deliberadamente, adotou medidas que comprovadamente levam a um maior número de acidentes no trânsito com maior número de mortes e lesões. E isso é um custo monumental para a saúde. É impossível fechar essa conta”, afirma.
1. Quais são as consequências do fim da cobrança de multa caso o motorista não utilize a cadeirinha infantil?
É uma medida absolutamente contrária às melhores práticas internacionais e a tudo que temos estudado e observado no campo de regulação prática e segurança viária nos últimos anos. O uso de dispositivos de segurança para crianças é um dos cinco fatores de risco ou uma das cinco melhores práticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O que precisamos não é retirar infração de trânsito e transformar em educativa. Para fins de mudança comportamental, precisa de mais fiscalização. No mundo inteiro, a principal causa de mortes de crianças de 5 a 14 anos são os acidentes de trânsito. Se estamos retirando uma infração que comprovadamente, pela OMS, por todos os atores internacionais, todas as cidades e países que já estudaram e levariam isso a sério no mundo, reduz mortalidade de crianças, isso está contribuindo ainda mais para uma tragédia humana de promover mais mortalidade de jovens e crianças no Brasil.
2. Como você avalia o aumento do limite de pontuação previsto na lei, sobretudo na comparação com outros países?
É uma péssima medida. Não é respaldada por nenhuma das recomendações internacionais, não é respaldada por melhores práticas… Tem inúmeros casos, inclusive o próprio caso do Brasil com a publicação do Código de Trânsito Brasileiro em 1997 que mostram que não bastam só as sanções com multas. As sanções administrativas são necessárias. Não estou falando de criminalização da conduta, falo de sanções administrativas adicionais. Porque senão você cria mais uma camada de desigualdade em um país já desigual. Quem pode pagar pelas multas terá salvo conduto. O sistema de pontuação coloca um limite para isso, calibra isso melhor. E é extremamente efetivo. É justamente pelo receio de ficar sem carteira de habilitação que faz o motorista pensar duas vezes antes de agir de uma forma sem atenção no trânsito e desrespeitosa às leis de trânsito. Vários estudos mostram isso.
Como estamos falando de exposição de risco e práticas de risco, levando a 37 mil mortos em 2017 e quase meio milhão de feridos, ao retirar pela metade a eficiência da pontuação, estamos potencialmente abrindo a possibilidade de aumento substancial desse número de mortos e feridos. Se vai ter mais gente agindo de forma indevida no trânsito, vai ter mais comportamento de risco e mais exposição ao risco. Com mais fatores de risco sendo praticados, isso vai gerar mais acidente e lesão. Se não tiver preocupação com a vida do cidadão, o governo deveria estar preocupado pelo menos com o orçamento, em uma época de discussão sobre várias pautas econômicas por conta da redução orçamentária. Hoje no Brasil 60% dos leitos de UTI são ocupados por acidentados de trânsito. Isto é uma loucura. Caso esse projeto de lei seja aprovado, um monte de gente que poderia estar na UTI por questões que não podem evitar, ou seja, que não são acidentados de trânsito, vai deixar de estar. É uma legislação que, deliberadamente, adotou medidas que comprovadamente levam a um maior número de acidentes no trânsito com maior número de mortes e lesões. E isso é um custo monumental para a saúde. É impossível fechar essa conta.
3. Como você avalia as outras mudanças, como em relação ao capacete e aos exames toxicológicos?
Nós avançamos muito no Brasil na fiscalização e no uso adequado do capacete. Contava como infração gravíssima não usar de forma adequada ou não usar, agora reduz para infração média. Ou seja, torna mais branda a sanção e menos efetiva essa infração. E com isso pode ter mais gente usando capacete de forma inadequada, o que é a forma de salvar vidas e minimizar lesões cranianas dos motociclistas. Em um cenário de expansão da motocicleta, relacionado também ao aumento de desemprego, é uma receita para uma tragédia. A mudança da necessidade de renovação da carteira de 5 para 10 anos também é um ponto preocupante. Esse momento de renovação é aquele em que o motorista é forçado a visitar o órgão estatal e apresentar documentos, além de fazer os exames.
Se precisa renovar em 5 anos, vai ter fiscalização obrigatoriamente em algum momento. É mais uma forma de afrouxar a efetividade da regulação, o que também é preocupante. Em relação aos exames toxicológicos destinados às categorias C, D e E, que são aquelas de profissionais e veículos pesados, não entendi a razão para a mudança. Você amplia o prazo só para quando houver renovação, ou seja, vai passar a ser de 10 anos a obrigatoriedade. Era feito de dois anos e meio em dois anos e meio. Quase quadruplica o prazo dos exames. A gente sabe que o uso de substâncias que alteram a condição de dirigir é bastante complicado para o motorista profissional. É tanto que várias empresas submetem voluntariamente o motorista de caminhão e de vans a testes com mais frequência do que a legislação exige. Com a legislação afrouxando, os profissionais que não fazem parte de grandes empresas vão ser colocados em risco. E acidentes com veículos de grande porte são muito mais graves. (Agência Estado)