O Poder Judiciário ainda não está convencido de que o país não viverá, novamente, um novo período de ataques ao Estado Democrático de Direito, como aconteceu nas semanas que precederam e durante as manifestações do 7 de Setembro. Depois de discursos inflamados e críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Jair Bolsonaro baixou a guarda e vem adotando uma postura mais branda nos recentes discursos. No entanto, a mudança repentina de comportamento não é suficiente para afastar a desconfiança.
Especialistas ouvidos pela reportagem consideram que as demonstrações de boa vontade podem ser um recuo repentino e devido a uma reunião de fatores que desembocaram na baixa popularidade apontada pelas pesquisas de opinião — provocada não apenas pela postura belicosa em relação às demais instituições de Estado, mas também por problemas concretos como inflação e juros em rota ascendente, crise hídrica sem um plano concreto para enfrentá-la e entraves na vacinação que reduziu as mortes e casos de Covid-19.
Na avaliação do cientista político Leonardo Queiroz Leite, doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV-SP), a radicalização do atual governo é a principal responsável pela instabilidade entre os Poderes. “A Justiça prendeu muita gente e investigou em outros governos. Mas não víamos essa agressividade. Isso cria um desgaste desnecessário e uma tensão. Fica mais nítido no caso do Supremo, por ser a última instância e fortemente politizado”, ressalta.
Para o advogado constitucionalista e cientista político Nauê Bernardo de Azevedo, o bolsonarismo ainda vai demorar a acabar. “É um longo processo de radicalização da exclusão do outro, de inabilidade de lidar com o contrário, de impossibilidade de debater com tranquilidade e honestidade os assuntos mais sérios. Isso não é exclusivo apenas do bolsonarismo, apesar de ser mais pulsante nesta ala da população”, avalia.
A maioria dos ministros do STF expressou publicamente a indignação diante dos ataques e movimentos autoritários. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), porém, há muito apoio ao governo Bolsonaro. Nauê Bernardo explica como essa politização dos tribunais pode atrapalhar o trabalho da Justiça.
“Da mesma forma que existe muita divisão nos tribunais, há também um senso legalista ainda em vigor. Vide, por exemplo, o STJ concedendo medidas judiciais para trancar inquéritos policiais movidos contra pessoas com opiniões críticas ao governo”, destaca.
Apesar de possuir apoio de parte do STJ, institucionalmente o tribunal manteve a mesma posição do STF. À reportagem, o STF reafirmou que “se pronunciou em nome do Poder Judiciário e dos magistrados brasileiros. Os poderes da República são autônomos, independentes e harmônicos entre si, nos termos da Constituição Federal”.
O jurista Marco Aurélio Carvalho aponta que, neste caso, uma das saídas para que STF se proteja de novos ataques seria uma requisição ao procurador-geral da República, Augusto Aras, para a instauração de um procedimento administrativo a fim de apurar a conduta do presidente. “Pode, inclusive, ser tipificada como crime de responsabilidade e abre-se, portanto, o início do chamado processo de impeachment”, afirma.
Para Carvalho, a nova postura de Bolsonaro não é suficiente para apagar o comportamento no período precedente ao 7 de Setembro. “Não podemos passar a mensagem de que atentado à Constituição, a rigidez das instituições e a harmonia dos Poderes podem ser relativizados. Ao contrário: eles formam precedentes para que novos ataques possam ser feitos”, diz.
Investigações
Mesmo com o esfriamento da temperatura que subia, Bolsonaro ainda deve enfrentar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A Corte não desistiu de tocar as ações contra o presidente, que podem resultar em cassação — ele é investigado em um inquérito que apura a disseminação de fake news.
O pedido é baseado nos constantes ataques, sem provas, feitos por Bolsonaro às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral do país. Crítico do sistema eletrônico de votação, o presidente há mais de dois anos afirma que houve fraude nas eleições de 2018 — que, segundo ele, teriam lhe dado a vitória sobre Fernando Haddad no primeiro turno da corrida presidencial. Porém, jamais apresentou provas disso. Agora, já elogia o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que incluiu as Forças Armadas na fiscalização das urnas.
Outro fator que pode ter peso na moderação de Bolsonaro é um dos principais alvos de ataque do presidente e seus aliados e apoiadores: Alexandre de Moraes. O ministro estará à frente do TSE em 2022, ano das eleições presidenciais, e, por isso, seria estratégico não ter problemas com ele.
O cientista político David Fleischer, da Universidade de Brasília (UnB), explica que Moraes pode pautar a inelegibilidade do presidente. “O TSE pode declarar Bolsonaro inelegível. O pior para Bolsonaro são as constantes ofensas a Alexandre de Moraes, justamente quem irá presidir o TSE em 2022”, diz.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que prioriza a votação de muitas das pautas do governo e levou ao Plenário da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 135/19, do voto impresso, criticou Bolsonaro pela insistência no assunto, mesmo após a derrota pelo conjunto dos deputados — e pediu respeito entre os Poderes. O vice-presidente da Casa, Marcelo Ramos (PSD-AM), chegou a dizer que o impeachment do presidente era “inevitável” após os ataques realizados pelo chefe do Planalto.
Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), também defendeu diálogo respeitoso entre Legislativo, Executivo e Judiciário, e afirmou que a política feita com “agressividade” e “desrespeito” era um caminho “nefasto” e “sem volta”.
Três perguntas para Ministra Delaíde Miranda Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
Palavras não correspondem aos atos
Apesar de na carta pós-7 de Setembro Jair Bolsonaro ter levantado bandeira branca, a trégua com o Poder Judiciário é vista com desconfiança por alguns dos seus setores. De acordo com a ministra Delaíde Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), as palavras do presidente da República não correspondem aos seus atos. Na semana passada, na abertura da 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, a expectativa era de que Bolsonaro fizesse um discurso amplo, sinalizando para o público externo e para toda a sociedade brasileira. Mas o que se viu foi um aceno à base, com temas que mobilizam seus mais fieis apoiadores. Por causa de gestos assim, a ministra recomenda cautela, sobretudo porque é o Estado Democrático de Direito que está em risco.
Vimos o Judiciário ser atacado pelo Executivo e por apoiadores do governo. Qual é o risco dessa postura para as instituições?
O maior risco é para a democracia e o Estado de Direito, conquistados pelos brasileiros com muita luta, ao alto custo de muitas vidas e de resistência à ditadura militar, por mais de 20 anos em nosso país. Até o atual chefe do Poder Executivo assumir o poder, a Nação vinha evoluindo rumo à consolidação da democracia. Contudo, o que estamos assistindo agora é a prática crescente e reiterada de violações a garantias e preceitos democráticos, com sérios riscos à Nação e ao povo.
O presidente, agora, afirma que quer harmonia entre os Poderes. A senhora acredita que isso é o suficiente para resolver a crise entre as instituições?
A afirmação do presidente Jair Bolsonaro sobre o restabelecimento da harmonia entre os Poderes precisa ser vista com cautela. As práticas, em passado recente de críticas ao Judiciário e a seus integrantes; de críticas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a seu presidente (ministro Luís Roberto Barroso), bem como práticas que tem adotado em outras áreas — como na saúde ou no meio ambiente —, não avalizam as “intenções e atitudes” manifestadas de público. As crises se acirram — política, econômica e sanitária —, as denúncias de atos de desrespeito à Constituição praticados pelo chefe do Executivo e por integrantes de sua equipe crescem. Tem, ainda, o negacionismo quanto à Covid-19, que vem sendo demonstrado que contribuiu para a morte de mais de meio milhão de pessoas no Brasil. Avalio esse momento como preocupante.
O Judiciário tem um papel fundamental na sociedade. Como manter a união deste Poder?
O Judiciário vem cumprindo esse papel conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988. Quando se fala em união, não se pode exigir união tão somente por parte do Judiciário. Não pode ser uma exigência do Executivo a todo preço, mas precisa ser decorrência do respeito e da independência que a Constituição assegura aos Poderes da República, e que o Estado Democrático de Direito exige. Manter a união do Judiciário com o Executivo será consequência e decorrência natural do respeito à Constituição e aos preceitos federativos que balizam a democracia. E garantem o Estado de Direito por parte do Executivo e de seu mandatário.