Se a pandemia de Covid-19 pegou até mesmo médicos veteranos de surpresa, os novatos da área tiveram que se adaptar rapidamente para aprender a profissão em meio a uma crise sanitária.
“Quando estava no sexto ano, o HC [Hospital das Clínicas] virou um hospital de Covid-19. Eles montaram um estágio para os alunos viverem esse momento. Isso me deu experiência para lidar melhor com essa situação enquanto recém-formado”, afirma Mateus Henrique Fernandes, 25, que se formou em 2020 pela Faculdade de Medicina da USP.
Em 2021, o médico assumiu plantões no Hospital da Força Aérea de São Paulo -ele é militar da Marinha-, e em duas unidades da Rede Dor no ABC paulista.
“É preciso estar sempre pronto para novas situações. Do dia para a noite apareceu uma doença que reinventou o que estávamos aprendendo na faculdade.”
A tarefa mais difícil, diz ele, foi informar para familiares a morte de um ente querido. “A situação que mais me marcou durante a pandemia foi a primeira vez que contei a uma pessoa que a mãe dela tinha falecido e foi por telefone. Por minutos pensei como passar essa notícia. Durante a faculdade aprendemos maneiras de fazer isso, mas de repente todos os protocolos se vão. Foi terrível e desafiador”, conta o médico.
“Como profissionais, temos que ser capazes de se reinventar, nunca perder o lado humano e estar sempre pronto para os desafios que vamos viver, como a Covid-19, por exemplo.”
Em 2020, o governo federal permitiu a antecipação da formatura de estudantes de medicina para reforçar os hospitais no combate ao coronavírus. A medida poderia ser aplicada se os estudantes estivessem com 75% da carga horária do internato completa.
Leonardo Antonucci Moretti, 26, foi um dos contemplados. Na Universidade Federal de Goiás, ele antecipou a formatura de dezembro para agosto de 2020, trabalhou numa UBS em Jardinópolis (no interior de São Paulo) e fez alguns plantões em uma enfermaria de Covid-19 no Hospital Santa Lydia, em Ribeirão Preto.
Em março de 2021, começou a residência em medicina de família e comunidade no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
“A Covid me ensinou a estar preparado para tudo. De uma hora para outra eu me formei mais cedo e caí trabalhando no meio de uma pandemia. Antes, nunca tinha parado para pensar em pandemias. Quando teve a epidemia de influenza eu estava no ensino médio”, conta Moretti.
“Não acho que perdi muito da faculdade e foi bom ter a experiência de trabalhar mais cedo, antes da residência”, afirma.
Segundo Moretti, o que mais o assustou, além da gravidade da doença, foi a rapidez com que ela provocou a mudança na vida das pessoas. Para ele, a Covid-19 trouxe a reflexão da importância do SUS (Sistema Único de Saúde).
Para André Mota, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e um dos autores do livro “Sobre a pandemia: experiências, tempos & reflexões”, a crise sanitária obrigou os alunos a repensarem sua realidade e o papel da medicina nos dias atuais.
“Qual a importância da profissão médica de alguém que vai trabalhar com saúde dentro de uma experiência pandêmica e de um contexto tão turbulento como vem sendo o brasileiro. Sem dúvida, isso foi fundamental na construção e a gente espera que isso vá se desdobrar nas próximas disciplinas e nos próximos anos, na própria formação médica.”
Giovana Delboni, 45, entrou em uma faculdade de medicina quando já tinha mais de 30 anos -antes disso, trabalhou por algum tempo como farmacêutica. Para ela, que no início de 2020 terminou sua segunda residência, a idade e o fato de ter um curso anterior na área da saúde a prepararam melhor para encarar a situação provocada pela pandemia.
“Tive contato com os pacientes mais graves e os piores desfechos. A pandemia me ensinou que temos que valorizar muito a família, os amigos, o convívio com as pessoas e não deixar as coisas para depois. Foi muito triste ver os pacientes longe dos familiares e ter que dar a notícia do óbito com a frequência que aconteceu”, conta.
“Às vezes, trabalhamos tanto e o dia nos consome de tal forma que passamos a não dar valor a coisas simples, que são as que valem a pena na vida. A gente se privou muito disso para cuidar de outras pessoas. Foi uma coisa que me tocou muito”, completa Delboni, que ficou um ano longe da família.
O aprendizado não ficou só no campo pessoal. Além de ter intensificado o trabalho no dia a dia com os pacientes e ter tido a possibilidade de entender como a patologia agia no organismo, Delboni define a vivência como um período de efervescência de cultura e educação médica, que avaliou como positivo e negativo – neste caso, um exemplo foi a indicação de tratamentos com eficiência não comprovada pela ciência.
“Comecei como médica intensivista enfrentando uma doença nova e com proporções pandêmicas. No dia a dia, no cuidado dos doentes, fizemos uma série de coisas que víamos na literatura, mas não tínhamos contato na prática. Ficamos mais treinados e aperfeiçoamos as técnicas e o cuidado”, explica a médica.