Mais de 30 cachorros ficaram sozinhos depois que os donos deles, um casal de irmãos idosos, morreram em decorrência da Covid-19 em Mogi das Cruzes. Os animais estavam na casa em que viviam, no bairro Cidade Jardim, até serem doados. Parte deles ainda está sob os cuidados de uma ONG da cidade.
Da internação à morte dos donos, no final do mês de janeiro, os cães foram alimentados por uma vizinha. No entanto, como eram muitos, estavam em más condições quando foram resgatados pelo Grupo Fera. Segundo Fernanda Moreno, vereadora e mantenedora da ONG, a casa tinha odor forte e os animais pareciam estressados.
Os cachorros são, na maioria, das raças yorkshire e shih-tzu. Eles foram criados pelos tutores ao longo de anos para reprodução e venda de filhotes. Com a idade avançada dos cães, os donos decidiram castrá-los e mantê-los em casa.
No início do ano, um dos criadores faleceu em decorrência do coronavírus. Em seguida, foi a vez da irmã dele. Segundo Fernanda, não há informação de familiares que pudessem cuidar dos animais.
“Eles eram japoneses bem tradicionais. Eles até falavam com um pouquinho de sotaque. Então, se tem parente, você vê que é longe. Moravam em uma casa simples, mas tinham uma condição. Você vê que os animais comiam boa ração, mas é que era muito cachorro. Chega uma idade que o dono não consegue mais cuidar direito. A casa estava com um odor muito forte”, comenta.
“Eu fui lá na casa e perguntei pra vizinha: quantos animais ainda tem? Ela falou: ‘olha, tem 12, mas dois já estão prometidos’. Pedi para ela entregar para ONG, pra gente fazer a doação deles. Ela entregou. A gente pegou 10, mas no começo eram mais de 30 animais. A vizinha cuidava, dava comida. Por desespero, ela acabou doando esses animais”.
Dos 10 resgatados, cinco foram doados. Os outros ainda estão com o Grupo Fera, mas a ativista destaca que eles têm problemas de saúde, como cegueira e doenças endócrinas. São animais mais velhos, que requerem cuidados, mas ainda esperam por um lar.
Abandono e pandemia
Mesmo que os donos tivessem parentes, Fernanda não acha que eles iam querer cuidar dos cachorros. Ela relata que é comum que familiares da pessoa que se foi negligenciem os bichinhos, o que acaba levando ao abandono e aos maus-tratos. Nesses momentos, há também quem recorra às ONG, mesmo tendo condições de manter o pet.
“É comum os familiares quererem os bens do tutor dos animais, mas não querer os animais. Os filhos, sobrinhos, irmãos, daquela pessoa que faleceu e deixou os animais têm pressa em se desfazer dos móveis e colocar o imóvel a venda, porque ela quer ter um retorno com aquilo. Aí, ela quer que alguém assuma o cachorro. Ela procura a ONG, porque pensa que a ONG tem espaço, procura a zoonoses. Ou, muitas vezes, acaba abandonando mesmo”, comenta.
Além da morte de quem cuida dos cães e gatos, a crise provocada pela pandemia também tem dificultado o cuidado com os animais. A ativista diz que há quem tenha empatia e se esforce para manter o bem-estar dos bichos mesmo neste período. Porém, nem todo mundo age dessa forma e, como consequência, o abandono e a devolução de pets adotados se tornou mais frequente no último ano.
“Tem uma senhora que faz faxina, bico aqui, bico ali, um monte de gente falou que não vai mais pegar a faxina dela porque não está podendo pagar, não pode receber gente em casa. Ela conseguiu receber o auxílio emergencial, mas acabou o auxílio. Ela tem mais de 20 gatos, seis cães, e entrou em contato com a gente essa semana porque está dando pão e arroz para os bichos comerem”.
“Não é todo mundo que tem essa consciência, por isso o abandono aumentou muito. A gente está com muito problema de abandono agora na pandemia. São muitos cães abandonados. Tudo gera uma desculpa para abandonar, mas a gente está tendo caso de devolução de animais na onda, pra você ter ideia, de animal que foi adotado um ano atrás”.
Fernanda entende que as dificuldades financeiras aumentaram nos últimos meses, mas lembra que a adoção de cães e gatos requer responsabilidade. Os pets não são produtos sujeitos à devolução e devem ser visto como parte da família, mesmo nos dias mais complicados, destaca.
“A pessoa vem e diz ‘desculpa, mas não vou poder ficar mais’. É algo como ‘comprei uma mercadoria com vocês um ano atrás, e agora quero que vocês aceitem de volta porque eu não posso mais ficar’”, lamenta Fernanda.
A necessidade subiu e os preços também
Para piorar, o aumento no número de animais abandonados acompanha a elevação no preço dos produtos que são essenciais para o cuidado deles. As rações, por exemplo, ficaram 30% mais caras na pandemia, de acordo com a ativista. Além disso, as idas ao veterinário também estão pesando mais no bolso, pois, com a Covid-19, os itens hospitalares ficaram mais caros.
“Aumentou muito o custo. Uma ração que um ano atrás você comprava um saco de 10 quilos a R$ 98, hoje o mesmo pacote de ração está R$ 127, R$ 134, ou seja, teve um aumento de 30%. O salário não aumenta, a doação também não”.
“Até o custo da agulha. Luva, tudo, essas coisas estão um absurdo. Por conta da pandemia, infelizmente, a gente vive no país da vantagem. Aí aumentaram tudo, porque tem a vacinação da Covid”, completa.
Na contramão do aumento, as doações caem. Com um gasto mensal que pode chegar a R$ 8 mil, o Grupo Fera é dependente da ajuda de empresas e pessoas físicas preocupadas com a causa. Sem isso, o número de animais atendidos tende a cair.
“Ração tem pet shop que doa. Tem a internet, que a gente faz campanha e o pessoal acaba ajudando. Só que o hoje o Fera tem uma despesa mensal alta, entre ração, hotelzinho, a gente também paga uma pessoa para cuidar de gatinhos em um lar temporário, até produto de limpeza, que a gente esquece de falar, mas que gasta bastante”, destaca.
“Hoje, eu como vereadora, sou a principal mantenedora da ONG. Tem pessoas que ajudam, mas o Grupo Fera ainda depende de uma pessoa que custeie essas despesas. Imagina se a gente não tivesse essa parceria, essas doações. Isso ajuda muito”, completa Fernanda Moreno.
Os abrigos para animais e as casas dos protetores, que às vezes servem de lar temporário para cães e gatos resgatados, estão lotados. Para a vereadora, as consequências do coronavírus na realidade dos pets ainda é imensurável e resta a esperança de que os próximos meses não sejam ainda mais dolorosos.
“A gente ainda não tem como prospectar quanto tempo isso vai levar para retomar, voltar ao normal. A pandemia também, de certa forma, é desculpa para muita coisa. O cobertor é curto, a gente quer cobrir todo mundo, mas não consegue ajudar todo mundo que pede ajuda. A gente ainda vai sentir muitos reflexos da pandemia”, conclui.