O líder do grupo mercenário russo Wagner, Ievguêni Prigojin, aceitou os termos de um acordo com o Kremlin mediado pela ditadura da Belarus e ordenou que suas forças a caminho de Moscou deem meia-volta e “retornem para suas bases”.
O dramático desenvolvimento da maior rebelião militar em solo russo desde os anos 1990 veio de forma surpreendente, ontem (24), após a ampliação de combates e com o presidente Vladimir Putin prometendo esmagar o levante dos mercenários comandados pelo seu ex-aliado próximo.
No comunicado, Prigojin afirma que aceitou os termos, que, segundo o ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko, envolveram uma anistia para os rebelados, “para evitar derramamento de sangue”.
Ao longo do dia, imagens mostraram Prigojin assentar-se no quartel-general do Comando Militar do Sul, peça central na engrenagem da Guerra da Ucrânia, na qual o Wagner lutou e que agora é criticada pelo líder.
O local fica na capital regional Rostov-do-Don, que caiu sob controle do Wagner. Enquanto isso, as forças de Prigojin avançaram rumo ao norte, com registros de batalhas ao longo do caminho.
Em Voronej, helicópteros russos foram alvo de baterias antiaéreas do grupo, e um comboio foi explodido numa estrada. No meio da tarde, fim da manhã no Brasil, o governador da região imediatamente ao norte, Lipetsk, a 350 km de Moscou, disse ter visto forças de Prigojin.
Houve sinais de pânico acerca do comboio, com cerca de 300 veículos, inclusive tanques modernos T-90S, sendo transportados em carretas. Retroescavadeiras foram usadas para destruir trechos da rodovia que liga o sul a Moscou, a M4, que para todos os efeitos havia sido fechada.
A Prefeitura de Moscou determinou feriado na segunda-feira (26) e recomendou aos cidadãos que não viajassem até lá. Medidas antiterrorismo foram aplicadas, com reforço do policiamento, embora o clima no geral da capital fosse de normalidade, segundo moradores disseram à Folha.
Não se via tal movimentação desde que o então presidente Boris Ieltsin lidou à bala com uma revolta parlamentar em 1993 e nas duas guerras de secessão da Tchetchênia, em 1994-1996 e 1999-2000.
“Ambições excessivas levaram à traição. É um golpe contra a Rússia e seu povo. Nossas ações para proteger a pátria-mãe serão duras”, disse Putin, em rede nacional de TV. “Todos que entraram no caminho da traição, que prepararam uma rebelião armada, que adotaram chantagem e métodos terroristas sofrerão a punição inevitável.”
O presidente russo estava visivelmente irritado. Prigojin, afinal, era conhecido até há pouco como “o chef de Putin”, responsável pela alimentação do Kremlin desde os anos 2000 e, desde 2014, dono de um crescente exército particular a serviço do líder.
Em uma concessão à gravidade da situação, Putin afirmou que “este é o mesmo tipo de golpe que a Rússia sentiu em 1917”. “Intrigas e politicagem nas costas do Exército e do povo levaram ao maior choque, a destruição do Exército, o colapso do Estado, a perda de muitos territórios e, no fim, a tragédia e a guerra civil. Russos mataram russos, irmãos mataram irmãos.”
Ele se referia aos passos que levaram ao golpe bolchevista que derrubou o governo que removeu o czar do poder, levando à Guerra Civil Russa, que matou milhões até a formação da União Soviética, em 1922.
Logo depois da fala, Prigojin foi ao Telegram e mudou seu tom, criticando pela primeira vez o ex-chefe —até aqui, só havia atacado a liderança militar, a começar pelo ministro Serguei Choigu, da Defesa.
“O presidente comete um grande erro quando fala em traição. Somos patriotas, estamos lutando pela pátria-mãe. Não queremos corrupção. Estamos prontos para morrer”.
Em campo, foi como se a guerra no país vizinho tivesse recomeçado. “Passei a madrugada em claro. Onde moro, no sul de Rostov, as coisas estão calmas, mas as ruas estão vazias. No centro, o governo pediu para ninguém ir, e eu não arrisquei”, afirmou Ivan, comerciante que pede para não ter o sobrenome publicado.
Quem arriscou captou imagens com celulares que agora correm o mundo, de soldados do Wagner cercando o quartel-general da Polícia Nacional e de pelo menos dois tanques, além de diversos blindados que o grupo usou na Ucrânia, nas ruas da região central.
Em Voronej, houve uma grande explosão em um depósito militar de combustível. Há duas versões: uma de que o combustível pertencia ao Wagner, em apoio à sua ação no leste da Ucrânia, e foi atingido pela Força Aérea russa. A outra, de que foram os mercenários que atearam fogo ao local.
Em qualquer caso, esta constitui a maior crise já enfrentada por Putin após sua chegada ao poder, em 1999. Naquele ano e no seguinte, derrotou os separatistas tchetchenos e instalou a dinastia dos Kadirov no país muçulmano, mas em nenhum momento houve um desafio parecido às suas Forças Armadas.
Não sem ironia, o ditador tchetcheno, Ramzan Kadirov, foi chamado para o combate contra o ex-aliado Prigojin. Seus soldados foram vistos, em comboio, rumo a Rostov, o que antecipava uma sangrenta batalha entre as forças mais temidas sob o guarda-chuva russo.
Ele também é rival de Choigu, mas compôs com o ministro quando a Defesa enquadrou os mercenários, obrigando-os a assinar contratos. Isso foi a gota d’água da rixa entre Prigojin e os militares, marcada por acusações de boicote ao Wagner, que tomou Bakhmut, única vitória expressiva russa neste ano. No sul, vídeos apontam que forças tchetchenas já estão rumo a Rostov-do-Don, onde Prigojin está encastelado.
Putin viu sua autoridade erodida no episódio, mas ainda é cedo para compreender exatamente em que medida. As ondas de choque do episódio ainda vão reverberar. Os detalhes da crise ainda estão em aberto, e nada garante que os mercenários não voltaram à carga.
Prigojin diz ter “25 mil homens, e mais 25 mil a qualquer momento”, sugerindo espalhar sua sublevação. Até aqui, porém, isso não foi visto, e seu principal aliado no alto escalão militar, o general Serguei Surovikin, havia pedido que ele desista do motim e se entregue.
Para o “chef de Putin”, as opções eram poucas sem adesão. Sem Surovikin e se não alcançar a soldadesca em quartéis, está fadado a ver sua revolta ser asfixiada. O processo já aberto contra si pelo temido serviço de segurança FSB pode lhe dar 20 anos de cadeia, mas o dano à imagem de Putin e seu governo em um momento delicado ainda demanda avaliação.
Nos próximos dias talvez seja possível identificar o que realmente pesou. Como disse o analista militar Ruslan Pukhov à Folha, Prigojin se viu isolado e teve de recuar, mas não antes sem mostrar força. “Eles querem acabar com o Wagner, mas avançamos 200 km rumo a Moscou em um dia”, disse o “chef de Putin”.
Os adversários mais diretos aproveitam. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, postou no Twitter a avaliação de que a crise mostra “a fraqueza da Rússia” e conclamou a “comunidade internacional” a agir contra Putin. Nos EUA, patronos de Kiev, a ordem é de cautela.
O presidente Joe Biden está, segundo a Casa Branca, acompanhando os acontecimentos. Por mais que o país queira ver o rival de joelhos, não é do interesse americano uma instabilidade militar na única potência nuclear que faz frente a Washington.
Do outro lado, o líder russo falou por telefone com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que lhe ofereceu apoio e pediu comedimento. A Turquia, apesar de integrar a Otan e apoiar a Ucrânia, é próxima da Rússia e busca papel de mediação na guerra. Outros aliados expressaram apoio, como Irã e repúblicas centro-asiáticas.
A chancelaria russa também disse, em comunicado, que o Ocidente não deve tentar aproveitar a crise para “atingir seus objetivos russofóbicos”. Já o ex-presidente Dmitri Medvedev afirmou que o arsenal nuclear russo “na mão pode cair na mão de bandidos”.
Há, ainda, o risco de toda a crise, debelada, levar a um endurecimento ainda maior do regime e das ações militares na Ucrânia, até como forma de mostrar força aos adversários.
Nesta noite, por exemplo, foram lançados 51 mísseis de cruzeiro contra cidades ucranianas, o maior ataque em algumas semanas. Três pessoas morreram em Kiev, atingidas por destroços de projéteis abatidos.
Apesar de Prigojin ter divulgado o vídeo que deflagrou sua revolta criticando a guerra como um projeto da elite para tomar a Ucrânia, o Wagner não interrompeu ações russas. Aviões que participaram de ataques no vizinho levantaram voo normalmente da base de Rostov que suas forças dizem controlar. As informações são da Folha de São Paulo.