A Justiça do Trabalho de Minas Gerais reconheceu como acidente de trabalho a morte por covid-19 de um motorista de caminhão. A empregadora, uma transportadora, foi condenada a pagar indenização por danos morais, no valor de R$ 200 mil, e indenização por danos materiais em forma de pensão até que a filha complete 24 anos. A decisão é do juiz Luciano José de Oliveira, que analisou o caso na Vara do Trabalho de Três Corações (MG).
Na decisão do Tribunal do Trabalho da 3° Região (MG), a família, que requereu judicialmente a reparação compensatória, alegou que o trabalhador foi infectado pelo novo coronavírus no exercício de suas funções, foi internado e faleceu após complicações da doença. “O motorista começou a sentir os primeiros sintomas em 15 de maio de 2020, após realizar uma viagem de 10 dias da cidade de Extrema, Minas Gerais, para Maceió, Alagoas; e, na sequência, para Recife, Pernambuco”, explica em nota o Tribunal.
Em sua defesa, a empresa alegou que o caso não se enquadra na espécie de acidente de trabalho. “Informou que sempre cumpriu as normas atinentes à segurança de seus trabalhadores, após a declaração da situação de pandemia. Disse ainda que sempre forneceu os EPIs necessários, orientando os empregados quanto aos riscos de contaminação e às medidas profiláticas que deveriam ser adotadas”.
“Conclui-se ser absolutamente prescindível apurar a culpa do empregador pela ocorrência da fatalidade. Isso é, a adoção pela teoria da responsabilização objetiva, in casu, é inteiramente pertinente, porquanto advém do dever de assumir o risco por eventuais infortúnios sofridos pelo empregado ao submetê-lo ao trabalho durante período agudo da pandemia do coronavírus, sendo notória sua exposição habitual aos riscos de sofrer um mal maior, como ocorreu, encontrando-se absolutamente vulnerável aos ambientes a que se submetia ao longo das viagens, ficando suscetível à contaminação, seja pelas instalações sanitárias (muitas vezes precárias) existentes nos pontos de parada, seja nos pátios de carregamento dos colaboradores e clientes, seja na sede ou filiais da empresa”, diz um trecho da sentença.
E lembrou que, em abril do ano passado, o Supremo Tribunal Federal derrubou um artigo da Medida Provisória 927/2020 que previa que os casos de contaminação por covid-19 não seriam considerados ocupacionais.
Como a decisão foi tomada em primeira instância, a empresa ainda pode entrar com recurso para tentar derrubar a condenação. No processo, a transportadora contestou a tese de acidente de trabalho e argumentou que sempre cumpriu as normas sanitárias para garantir a segurança dos empregados na pandemia, inclusive com a distribuição de equipamentos de proteção individual (EPIs) e orientações sobre os riscos de contaminação.
Porém, na avaliação do caso, o juiz deu razão à família do motorista. Para o magistrado, a adoção da teoria da responsabilização objetiva, no caso, é inteiramente pertinente, pois advém do dever de assumir o risco por eventuais infortúnios sofridos pelo empregado ao submetê-lo ao trabalho durante a pandemia do coronavírus. “Na visão do juiz, o motorista ficou suscetível à contaminação nas instalações sanitárias, muitas vezes precárias, existentes nos pontos de parada, nos pátios de carregamento dos colaboradores e clientes e, ainda, na sede ou filiais da empresa”, explica em sentença.
O que dizem os especialistas
Conforme dispõe o art. 19 da Lei nº 8.213/91, “acidente de trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”.
Ramille Taguatinga, do Kolbe Advogados Associados, especialista em direito trabalhista, explica que segundo a lei, acidente de trabalho é aquele que acontece por conta do exercício da função, tal como quando um pintor, em cima de uma escada, cai dela enquanto pintava uma parede, quebrando a perna”.
De acordo com a especialista em direito trabalhista, o direito à indenização está intimamente relacionado aos danos causados pelo acidente de trabalho. “Os danos podem ser materiais (gastos com medicamentos e exames médicos, por exemplo), morais (quando atingem a esfera íntima do empregado) ou estéticos (quando alteram a fisionomia do empregado). Se existem danos que foram causados pelo acidente, há o nexo de causalidade; portanto, há o direito à indenização”.
Ramille explica que, para a morte ocasionada pelo coronavírus ser considerada acidente de trabalho, deve haver o entendimento do magistrado de que a empresa não adotou postura de proatividade e zelo em relação aos seus empregados, aderindo ao conjunto de medidas capazes de, senão neutralizar, ao menos minimizar o risco imposto aos trabalhadores. “O fornecimento de álcool e outros produtos para higiene como sabão nos banheiros, além da obrigatoriedade do uso de máscaras e o reforço do distanciamento entre os empregados é essencial para que os riscos sejam menores e a culpa da empresa seja afastada”.
Na avaliação da especialista em direito trabalhista, essa decisão impõe ônus excessivo sobre o empregador, considerando que o mundo inteiro está vivenciando a pandemia. “A atividade desempenhada pelo empregado, no caso, não poderia ser remota, pois era de motorista. Assim, as medidas a serem tomadas pela empresa devem ser as de minimização dos riscos, de forma que apenas a evidência absoluta de que nenhuma medida foi tomada, como, por exemplo, que não houvesse disponibilização de álcool ou exigência do uso de máscara, caracterizaria alguma responsabilidade da empresa, a qual ainda não seria absoluta, considerando que a infecção pelo coronavírus não ocorre exclusivamente pelo desempenho da atividade”, avalia.
O advogado Gabriel Cunha Rodrigues, especialista em direito do trabalho, comenta que é uma decisão paradigmática, sobretudo no atual cenário da pandemia, no qual o Poder Judiciário reconheceu a contaminação pelo coronavírus como doença ocupacional, enquadrada, portanto, como acidente de trabalho, cujo reflexo direto é a responsabilização objetiva da empresa. “Na realidade, a decisão reafirma o entendimento proferido pelo STF, que suspendeu a eficácia do artigo 29, da MP nº 927/2020, que trilhou a conclusão no sentido de que os casos de contaminação pelo coronavírus não seriam consideradas doenças ocupacionais”.
Em sua avaliação Gabriel diz que partindo-se da premissa de que a contaminação pelo coronavírus fora considerada como acidente de trabalho. “Toda a conclusão jurídica aponta para a responsabilização objetiva, na qual a empresa responderá independentemente de culpa ou dolo, tão somente pelo fato de assumir o risco de eventuais infortúnios sofridos pelo empregado ao submetê-lo ao trabalho durante o período da pandemia e a possibilidade de contaminação e complicações de saúde decorrentes do coronavírus”.
“A decisão se imiscuir em questões de prova, na qual ficou registrado que a empresa não atuou de forma a reduzir as possibilidades e graus de exposição do empregado ao contágio pelo coronavírus”, completa o especialista.
Cunha ressalta que a decisão precisa ser avaliada com bastante cautela, porquanto o entendimento no sentido de que o contágio pelo coronavírus se enquadra como acidente de trabalho reverbera, de modo exponencial, nas relações trabalhistas, e traz ao empregador diversas implicações jurídicas. “Como a decisão ainda é passível de recurso, é importante se atentar ao posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) sobre o tema e os reflexos dessa decisão, sobretudo pelo fato de que tal decisão transcenderá a diversos outros processos em trâmite no país”.