Por JOÃO MARCELO
“Oh Marina! Marina! Tem gente indo para tua casa!”. Em alto e bom som, seu Gilberto, vizinho de seu João de Cordeira e dona Marina, anunciou nossa chegada. Casa pequena, terreiro misturado ao belo jardim. O milharal frondoso rodeando a casa, emprestando um pouco da sombra, a fartura da fava e do feijão fincados na terra. “Oh de casa, tudo na paz!”. De lá de dentro, alguém responde. “Tudo!”. “Bom dia, meu filho, pode entrar”. Era dona Marina.
Rapidamente, expliquei o motivo da visita, entrevistar o seu esposo, seu João de Cordeira. “Ah, meu filho, ele não está, foi assentar uma cerâmica na casa de Renato. Vou logo dizendo, ele sempre promete voltar cedo da rua, mas quase nunca cumpre com a palavra”. A filha do casal se aproxima com sorriso largo, repassa logo o número do celular do pai. Daí em diante, tudo ficou fácil para marcar nosso primeiro encontro e acertar o dia de nossa entrevista.
A casa de Renato fica na rua da casa do português no bairro Néco de Léu, via muito conhecida em João Alfredo. Ao chegar ao endereço, Renato e seu João já nos esperavam. Sabedor de nosso propósito, sacou rapidamente do interior da bolsa um envelope com várias fotografias de um passado distante, registros de muitos carnavais do Clube de Caboclinhos da Melancia, o mais antigo bloco do gênero existente na cidade. “Ando sempre prevenido”, disse. Era um sábado, marcamos a entrevista para as 7h da próxima segunda-feira, dia de fogueira, dia de santo Antônio, dia de feira em João Alfredo.
No dia aprazado, aquele friozinho, cedinho nos dirigimos ao povoado da Melancia, perto da sede do município. Algumas fogueiras já estavam prontas, cordões com bandeirolas tremulavam em frente das casas. Na estrada, as cercas demarcam o verde do pasto, o verde do milho, o cheiro da vegetação, sinal das recentes chuvas caídas na localidade. Milho, pamonha, canjica, forró, fogos… É só esperar o anoitecer para tudo esquentar de vez. Seu Gilberto não precisou anunciar nossa chegada. O cachorrinho Jolí, amarrado na estaca do curral, cumpre sua missão. Latia sem parar, denunciava nossa presença.
Diante da porta, da humilde residência, avista-se toda a sala, paredes decoradas com fotos da família e de santos. Numa mesinha, há imagens de padre Cícero e frei Damião. Lá de dentro, se escuta a voz de dona Marina. “Cuida de trocar essa camisa para receber o home!”, adverte. Seu João chega ligeirinho com as mãos tomadas por adereços. “Estava cortando ração. Já terminei e não vejo a hora de a gente começar a prosa. Quer que eu vista os trajes?”. Respondo que sim. “Vamos registrar umas fotos, se possível, traga também um dos trajes para mim”. Após as fotos, começamos nossa entrevista no terreiro da casa. Terreiro da casa de João Luis de Santana, nascido em 05 de junho de 1942, em João Alfredo, Agreste pernambucano. Desde os 10 anos de idade, brinca de “cabocolino”, a forma que gosta de chamar a “brincadeira”. Ao nosso redor, reina o som de passarinhos, sob o atento ouvido da natureza.
Início
“Tudo começou com meu bisavô. Acredito que ele era mais índio do que meu avô, assim contava meu pai (Mané Lí). O comando da brincadeira foi passando de um para o outro e foi repassada do meu pai para mim”. Mergulhar no universo dos caboclinhos é resgatar um pouco da herança do povo indígena do Nordeste na construção da cultura de Pernambuco, na construção da identidade nordestina. “Faço de tudo para a brincadeira não acabar. Se tivesse uma melhor condição financeira, gastaria sem dó e sem pena na apresentação do caboclinho. É minha vida”, afirma.
A rotina diária do seu João se resume, na maioria dos meses, ao roçado. Plantar feijão, fava, milho, batata, macaxeira, banana, criar galinhas e cuidar de uma eguazinha, que serve de transporte. Esporadicamente, aparece um bico (pequenos serviços na construção).
Quando o mês de dezembro chega, tudo começa a mudar. Convida os integrantes do grupo, acerta o contrato com os músicos e marca os ensaios semanais, que ocorrem sempre aos domingos, costumeiramente, na frente das vendas (mercearias) da região. “Não ensaio aqui em casa porque minha mulher não gosta”, afirma. “Nos ensaios, sinto prazer de ensinar a quem quer aprender e de dar atenção melhor aos meninos. Quero que eles tomem gosto e nunca deixem a brincadeira acabar”.
Mulheres e adereços
Sobre a participação de mulheres no grupo, ele diz que elas só fazem olhar. Ao começar a descrever os passos da dança, das manobras, “meia lua traçada”, “cambalhota”, para, por um instante, e se gaba. “Quando era novo, eu era traquino. Desafiava qualquer um a dar mais cambalhotas do que eu. Eram três saltos para frente e voltava ligeiro saltando para trás. Hoje, as juntas não deixam, culpa da idade. Ainda sei fazer o coqueiro. Quer que eu faça?”. Antes de responder, o homem já se encontra prostrado no chão. De repente, encosta a cabeça no solo e levanta as pernas para o alto, demora um bom tempo parado na posição, abre um largo sorriso quando afirmo: “Esse seu João é um danado”.
João diz que prepara sozinho os adereços. As penas de pavão encomenda a um amigo. Antigamente, usava as de peru. Os trajes eram diferentes e se brincava de pés no chão. As gaitas eram feitas com bambu. “O som era fraco”, compara com as flautas modernas de hoje. “Uma flauta nova custa mais de R$ 900 em um armazém em Surubim. Muito caro”, completa. “Antigamente, meu pai fazia o bombo com madeira e couro de cabra, tudo a mão. “Hoje, faço as flechas, do modelo mais novo, mas, se o camarada quiser das antigas, também sei fazer”, comenta. “Só não faço as roupas, porque tem uma costureira em João Alfredo muito boa. Encomendo duas roupas só para mim em cada carnaval. O rojão é pesado. Muitos cabrinhas mais novos do que eu não aguentam”. Nesse instante, dona Marina, interrompe. ”Ele sai de madrugada no carnaval, logo cedo, só chega à noite. Meu filho mais novo, hoje, residente em São Paulo, brincou poucos anos com o pai, chegava reclamando e muito cansado”.
Continua…