O centenário de Abelardo Barbosa (1917-1988), que se comemora agora em 30 de setembro, está servindo de pretexto para variadas homenagens. Só a Globo, na semana passada, exibiu quatro, todas em tom de exaltação, sem qualquer registro crítico.
A principal delas foi o especial “Chacrinha – O Eterno Guerreiro”. Cantores consagrados, de diversas gerações, de Roberto Carlos a Anitta, desfilaram pelo auditório comandado por Stepan Nercessian, numa caracterização impressionante.
O especial, porém, “limpou” tudo que havia de mais polêmico em Chacrinha, como as humilhações a que submetia os calouros, os closes em detalhes íntimos das chacretes e o deboche dos jurados.
O elenco musical do seu programa era um espelho da indústria fonográfica da época, equilibrando-se entre os cantores de “prestígio” e os “bregas”. Esta tensão parece dissolvida nos dias de hoje em que a música sertaneja e romântica é hegemônica.
O “Conversa com Bial”, inteiramente dedicado a falar de Chacrinha, teve o mérito de lembrar disso.
O programa convidou para números musicais o cantor Byafra e a dupla Jane e Herondy –participantes “de raiz” do “Cassino” na década de 1980.
Continua…
O telejornal “Bom Dia Brasil” exibiu durante dois dias reportagens especiais festejando Chacrinha. Numa delas, lembrou do seu papel como “um incentivador da música brasileira”, o que é uma afirmação correta, mas incompleta sem a lembrança de que foi constantemente acusado de cobrar “jabá”.
O livro “Chacrinha “” A Biografia”, de Denílson Monteiro, trata abertamente do assunto, mostrando que ele conviveu com questionamentos a esta prática desde os tempos do rádio, na década de 1950.
Na sua biografia, “O Livro do Boni”, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho também enfrenta a questão. O ex-executivo da Globo conta que teve uma discussão feia com o apresentador por causa da acusação de que cobrava “por fora” dos músicos que iam ao programa. “Não sou ladrão. Não sou ladrão”, teria gritado Chacrinha.
Em entrevista a Bial, Boni fez um raro comentário crítico: “Abelardo era cínico, isolado, e não acreditava em ninguém. Nada a ver com o personagem que ele criou. A criatura era divertida, mas o criador era um chato de galocha“. Esta observação, porém, não foi ao ar, apesar de divulgada pela assessoria de imprensa da Globo na véspera da exibição do programa.
A entrevista a Bial também não tratou de um episódio importante, relatado no “Livro do Boni”. Numa noite de dezembro de 1972, o executivo tirou o programa do ar antes de sua conclusão, em resposta à recusa de Chacrinha em encerrá-lo no horário combinado. Na sequência, o apresentador foi para a emissora Tupi.
Em sua edição de 20 de dezembro de 1972, a revista “Veja” registrou a opinião de um diretor da Globo (não identificado) sobre o ocorrido: “A saída dele é benéfica, pois nós já não precisamos mais de ibope e sim de qualidade”.
É a época em que começa a busca pelo tal “padrão Globo de qualidade” e Chacrinha não se encaixa na nova imagem que a emissora quer projetar. Não foi o único, diga-se. A comediante Dercy Gonçalves já havia saído um ano antes (ambos voltaram na década de 1980).
O lugar de Chacrinha como um dos maiores –ou o maior, na visão de alguns– entre os comunicadores da TV brasileira é inquestionável. Mas homenagens não deveriam apagar fatos polêmicos ou tentar reescrever a história.