O presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido) editou uma Medida Provisória (MP) na véspera do feriado do Dia da Independência (7 de setembro), quando havia uma série de atos de raiz golpista marcados em sua defesa, alterando o Marco Civil da Internet. A lei em questão serve para regular o uso da rede mundial de computadores no Brasil, garantindo sua neutralidade, caráter democrático e coibindo crimes no ambiente virtual.
Críticos do governo alertaram que a edição da medida naquele momento tinha como objetivo favorecer o discurso político de cunho golpista e as fake news fabricadas pela base político-eleitoral de Bolsonaro. O texto da MP versa, principalmente, sobre o uso de plataformas de redes sociais digitais e seu uso, especialmente no que diz respeito à remoção de postagens por parte das empresas que prestam esse serviço no país.
A medida dificulta a remoção de posts, criando situações de “justa causa e motivação” como a detecção do uso de robôs, afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nudez, promoção ou ajuda a organizações criminosas ou terroristas e ensino do uso de computadores ou tecnologia da informação com o objetivo de roubar credenciais, invadir sistemas, comprometer dados pessoais ou causar danos a terceiros e por força de medida judicial, entre outras hipóteses.
No entanto, ao não incluir questões como discurso de ódio, bullying, fake news e desinformação, a MP editada um dia antes das manifestações em apoio ao presidente, situação muito propensa à disseminação de conteúdos enganosos, chamou a atenção. Além disso, sua edição, ao contrário do próprio Marco Civil da Internet, se deu de maneira apressada e sem debate público.
Outro ponto de destaque é que Medidas Provisórias são instrumentos jurídicos que exigem relevância e urgência acerca do tema tratado. No meio político, as mudanças trazidas pela MP ao Marco Civil não são urgentes e serviriam apenas para conquistar mais simpatia entre os apoiadores do presidente que propagam mentiras virtualmente.
Inconstitucionalidade
Esse posicionamento levou membros de partidos como o PSB, Solidariedade, PSDB, PT, Partido Novo e PDT a acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) com Ações Diretas de Inconstitucionalidade, entendendo que a ação do governo dificulta o combate às fake news, traz matérias impróprias para este instrumento legal e viola os princípios da vedação ao retrocesso, liberdade de expressão e à livre iniciativa. Já o governo alega que o objetivo da medida é “ornar mais claros os direitos e as garantias dos usuários de redes sociais que, no Brasil, já somam cerca de 150 milhões de pessoas”.
As ações estão sob relatoria da ministra Rosa Weber, que deu um prazo de 48 horas contadas a partis da última quinta-feira (9) para que Bolsonaro apresente explicações acerca da edição da medida. Através da Advocacia Geral da União (AGU) e da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Planalto rebateu os partidos que ingressaram com ações, afirmando que a medida foi pensada para proteger os usuários, a liberdade de expressão e conferir segurança jurídica, ‘preservando a internet como instrumento de participação democrática’.
Segundo a AGU, o objetivo da Medida Provisória é “evitar que os provedores façam uma seleção dos conteúdos postados, afastando-se de qualquer possibilidade de censura e enaltecendo o Princípio da Liberdade de Expressão”. A pasta alega ainda que “a livre iniciativa não afasta a regulação do Estado, que pode continuar exercendo suas atividades fiscalizadoras”.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no entanto, vai numa direção diametralmente oposta ao entendimento da AGU. Na última quarta-feira (9) a Ordem encaminhou um ofício ao presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), atestando a inconstitucionalidade do texto da MP nº 1.068/2021.
Segundo a OAB, a medida viola garantias da livre iniciativa e livre concorrência, fere a liberdade de expressão e informação, além de contribuir para a disseminação de fake news e discursos que atentam contra a democracia. “Informo que a OAB já estuda remédios legais contra a MP que altera o Marco Civil da Internet. Não vamos permitir retrocessos que favoreçam notícias falsas e desinformação”, escreveu o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, em seu Twitter.
Até o procurador-geral da República, Augusto Aras, frequentemente acusado de ser leniente com as atitudes do presidente, emitiu um parecer pedindo ao STF que suspenda a MP n.º 1.068/2021. No documento, o PGR argumenta que a medida “dificulta a ação de barreiras que evitem situações” potencialmente criminosas como, por exemplo, a disseminação de fake news, calúnia, difamação.
Aras também apontou a rapidez com que as mudanças foram feitas, através de Medida Provisória, alterando o Marco Civil da Internet em um prazo “exíguo para adaptação” e com previsão de imediata responsabilização pelo descumprimento de seus termos”, o que poderia acarretar insegurança jurídica.
Devolução
Além dos pedidos encaminhados ao STF, líderes políticos também pediram ao presidente do Senado a devolução da MP ao Executivo Nacional, visto que uma medida provisória passa a valer a partir da data de sua publicação e tem vigência de 60 dias, podendo ser prorrogada por mais dois meses. Caso não seja aprovada nem devolvida em até 45 dias, pode trancar a pauta da Casa Legislativa em que estiver tramitando.
Relator do Marco Civil da Internet, o deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da Oposição na Câmara, enviou ofício a Pacheco pedindo que o texto seja devolvivo. Ele foi seguido pelo líder do PCdoB na Câmara dos Deputados, Renildo Calheiros (PCdoB-PE), e por José Guimarães (PT-CE), vice-líder da Minoria.
O deputado federal Túlio Gadêlha (PDT-PE) também encaminhou um ofício a Rodrigo Pacheco pedindo a devolução da MP. “Fica evidente que o Presidente da República tem a intenção de legislar em causa própria, contribuindo para que ele e seus apoiadores consigam se blindar pelo uso indevido das redes sociais”, explicou Túlio.
O senador Humberto Costa (PT-PE) alertou, em entrevista à Rádio Senado, que a medida provisória vai favorecer a disseminação de fake News. “O presidente Rodrigo Pacheco deveria o mais rapidamente possível devolver essa medida provisória. Ela não tem qualquer relevância, ela não tem qualquer tipo de urgência e o seu conteúdo não é de aprimorar a nossa legislação. Mas é de garantir a continuidade da utilização indevida das redes sociais impunemente para a propagação de desinformação de notícias falsas e de discursos de ódio”, disse ele.
Diante de toda a pressão, há expectativas de que Pacheco realmente devolva a Medida provisória nos próximos dias, após ouvir líderes partidários acerca do assunto. Ainda na noite de 7 de setembro, o presidente do Senado cancelou todas as sessões marcadas para esta semana, alegando que não há “clima político” nem segurança para votar qualquer matéria.
Entretanto, durante o evento de celebração dos 40 anos da Fundação do Memorial JK e o 119° aniversário de nascimento de Juscelino Kubitschek, no domingo (12), o presidente do Senado Federal afirmou que está realizando um “trabalho de estudo interno pela consultoria legislativa do Senado, para fazermos a avaliação sobre constitucionalidade ou não dessa medida provisória. Até o início da próxima semana nós temos uma definição a respeito dessa MP”, sem determinar sua decisão.
“Oportunista, não oportuna”
Para lançar luz sobre o tema, o Diario de Pernambuco ouviu o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e sócio da área de Inovação & Tecnologia do LO Baptista Advogados, Fabricio Bertini Pasquot Polido, acerca das mudanças que a MP nº 1.068/2021 busca implementar ao Marco Civil da Internet e, de modo geral, à forma como os brasileiros utilizam a rede mundial de computadores.
Na visão do especialista, a rapidez com que a MP foi assinada, sem debate, a torna uma medida oportunista, razão pela qual ele defende que o Supremo Tribunal Federal suspenda seus efeitos. “Entendo que há fundamentos suficientes para o STF decidir pela concessão da medida cautelar e suspender a aplicação da MP, até que seja julgada a ação principal”.
“A Medida Provisória cria essas bases expressas de remoção para controlar o uso das redes sociais. É a forma unilateral do Executivo brasileiro olhar como a internet deve funcionar. As soluções aí não foram apuradas no processo que criou o Marco Civil da Internet, há um problema de governança regulatória. Esse tipo de modelo de regulação criado por uma Medida Provisória que eu poderia chamar oportunista, não oportuna”, afirmou Fabrício.
O professor também aponta para riscos e insegurança jurídica que a medida pode trazer ao impedir a remoção de conteúdo de acordo com regras determinadas pelas próprias plataformas digitais de redes sociais, condicionando a retirada de qualquer conteúdo unicamente a hipóteses de “justa causa” ou decisão judicial.
Para Fabrício, da forma como está, a MP não só traria insegurança jurídica como aumentaria a judicialização desse tipo de caso, aumentando a lentidão do Judiciário brasileiro, além de facilitar a circulação de conteúdos falsos, visto que fake news não estão na lista de “justa causa”.
“[A MP] cria dois universos paralelos, um onde as plataformas operam restritivamente, e outro em que usuários e plataformas vão operar tendo que pedir autorização ao Judiciário para decidir sobre a remoção de conteúdos, sobretudo naqueles casos que ficaram de fora da MP.
Outro risco que o especialista vê é a não remoção de conteúdos danosos, alguns até proibidos por outras leis brasileiras, que permaneceriam circulando nas redes até que saísse uma decisão judicial determinando a remoção por não estarem previstos nas hipóteses de justa causa.
“Há um mundo ideal em que as plataformas só podem remover o que a MP estabelece, e outro que blinda determinados usuários que fazem postagens de assédio, ódio, bullying e spam, poluindo visual e informacionalmente o ambiente das redes. Na prática, isso significa que usuários que tiverem perfis, por exemplo, que propagam venda de armas ou fazem apologia à violência estão blindados pela medida provisória. As plataformas não poderão mais exercer qualquer tipo de ação proativa de prevenção desse conteúdo”, explica Fabrício.