Augusto Fernandes e Ingrid Soares/Correio Braziliense
Enquanto o mundo luta para encontrar uma forma eficaz de fazer frente a covid-19, o Brasil está em meio a outra crise que se mostra tão perigosa quanto a própria pandemia. Mesmo com o novo coronavírus já tendo tirado a vida de mais de 15 mil brasileiros, o inimigo número um do governo federal neste momento parece não ser o micro-organismo, mas, sim, os governadores, massacrados por Jair Bolsonaro por seguirem o que recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS) para conter a proliferação da infecção. Apesar da preocupação dos políticos, o presidente os acusa de tentar “quebrar a economia para atingir o governo” e, na última semana, disse que o país está em “guerra” não contra a doença, mas contra os administradores estaduais.
Por mais que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha decidido que compete a estados e municípios decidir as suas próprias políticas sociais e de saúde no enfrentamento à covid-19, Bolsonaro deu de ombros para a ordem e montou uma estratégia para colocar os governadores como infratores da lei. Pregando constantemente que a atividade produtiva do Brasil tem que voltar à normalidade, a cada semana o presidente amplia a lista de atividades consideradas essenciais, como aconteceu recentemente com a inclusão de academias, barbearias e salões de beleza no rol. Assim, pressiona para que os gestores estaduais cumpram o seu decreto, mesmo não sendo obrigados. Quem não o atende, comete “desobediência civil”.
Na disputa de egos, a única certeza é de que o Brasil sairá derrotado. “Temos dois entendimentos que estão em choque e não há sinal de que vão desaparecer. Pelo contrário, devem aumentar. O presidente da República não está muito preocupado com relativizar conflitos, o que é uma insensatez. Todos nós vamos perder. O futuro que nos aguarda é nebuloso”, alertou o doutor em ciências sociais e professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Paulo Baía.
Ele reconheceu que a pandemia “traz grandes dificuldades e dramas para qualquer país” e que isso “não é uma questão exclusiva do Brasil”. No entanto, analisou que enquanto todos têm conseguido administrar divergências, isso não acontece por aqui. Com isso, não há unidade para se definir as melhores ações de combate aos efeitos da pandemia, tanto para agora quanto no período posterior. “Uma situação de emergência, que deveria ser tratada com emergência, não recebe os devidos cuidados. Enquanto isso, a população não sabe quem seguir. O reflexo são mais pessoas nas ruas. E é sabido que se não houver isolamento, o ritmo de contágio será maior, o que colocará o sistema de saúde em crise e incapaz de tratar doentes, não só da covid-19”, lembrou Baía.
A falta de consenso ficou evidente na quinta-feira passada, quando Bolsonaro pediu a empresários para jogares “pesado” contra os governadores, que têm adotado medidas de isolamento social mais rígidas para tentar conter a proliferação da covid-19 no Brasil. Segundo o presidente, “a questão é séria, é guerra, é o Brasil que está em jogo”. Como reflexo das divergências, até agora o governo não sancionou o projeto de socorro da União a estados e municípios, que vai ajudar os entes federativos com R$ 60 bilhões para ações de enfrentamento à pandemia. O texto foi aprovado pelo Congresso há mais de uma semana.
Principal desafeto de Bolsonaro, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), condenou o discurso de confronto do presidente e sugeriu a ele “sair da bolha de ódio” e começar a ser um líder “se for capaz”. “Retaliar governadores, que têm cumprido sua obrigação de atender à ciência e saúde para proteger vidas, é um gesto deplorável. Espero que ele cumpra, se for capaz, sua promessa de menos Brasília e mais Brasil. E cumpra também a promessa de obedecer ao pacto federativo. São Paulo está ao lado dos outros 26 estados brasileiros para defender os interesses da população e proteger a vida”, reagiu o governador.
Trocas ministeriais dificultam o diálogo
Jair Bolsonaro chegou a ser aconselhado, na última semana, pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a fazer uma videoconferência com governadores para tentar construir algum diálogo. No entanto, a relação dele com os chefes estaduais parece difícil de ser recuperada, especialmente após mais uma baixa no Ministério da Saúde e porque as saídas de Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta aconteceram porque os dois não cederam às vontades do presidente –– priorizando o que recomendam as autoridades sanitárias no combate ao vírus.
“Presidente Bolsonaro, ninguém vai conseguir fazer um trabalho sério com sua interferência nos ministérios e na Polícia Federal. É por isso que governadores e prefeitos precisam conduzir a crise da pandemia e não o senhor, presidente”, condenou o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).
“A saída de mais um ministro da saúde em meio à pandemia mostra como estamos à deriva no enfrentamento à crise por parte do governo federal. Ou o presidente deixa o ministério agir, segundo as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) ou vamos perder cada vez mais brasileiros”, reforçou o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB).
Segundo o cientista político Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Bolsonaro “sempre gosta de lembrar que é dono da caneta”. No entanto, o presidente “não entende a diferença substancial entre mandar e liderar” e, em mais de 500 dias de governo, “acha mais importante confrontar do que governar efetivamente o país”.
“Nesse momento, a sociedade brasileira reclama por uma liderança capaz de dialogar, de apontar um rumo e nos guiar. O brasileiro não encontra essa liderança na figura do presidente e as pesquisas demonstram que os governadores e até prefeitos são mais bem avaliados do que Bolsonaro”, pontuou o especialista.
Cortina de fumaça como escudo protetor
Em paralelo à estratégia de Jair Bolsonaro, há a tentativa de criar um fato político forte o suficiente para deixar fora dos holofotes as investigações contra ele em curso no Supremo Tribunal Federal (STF). Para a advogada Vera Chemim, mestra em direito público administrativo pela Fundação Getulio Vargas (FGV), as rusgas com governadores servem como uma ‘cortina de fumaça’, no sentido de desviar a atenção da opinião pública para as denúncias que pairam sobre o presidente e a família dele, bem como estimular uma “queda de braço” incluindo, também, o Congresso e a própria Suprema Corte.
“Os constantes conflitos institucionais levam à inversão de funções típicas da cada Poder Público decorrentes de suas disfuncionalidades. Promovem, na atual conjuntura de enfrentamento de uma grave crise sanitária, uma sensação de incerteza social e sobretudo macroeconômica, pari passu com uma frequente insegurança jurídica, pois testemunha-se um confronto nas três esferas de governo”, explicou Vera.
Na avaliação dela, o desencontro das orientações de natureza sanitária e jurídica apenas enfraquece o cenário político-institucional e, por consequência, as políticas públicas a serem implementadas para fazer frente à pandemia. Dessa forma, em razão da flagrante falta de liderança nacional, e de uma verdadeira preocupação com o bem-estar da população, a tendência é de que as estratégias para a saúde pública se mostrem cada vez mais fragmentadas e ineficazes.
“A continuar dessa forma — de um lado, o comportamento tresloucado do chefe do Poder Executivo, que deveria exercer, de fato, o papel de liderança nacional, disponibilizando segurança e solidariedade, e, ao invés disso, provoca conflitos de toda a ordem; de outro, a doença avançando cada vez mais e o sistema de saúde colapsando —, tanto a vida quanto a economia correm um sério risco de desaparecer gradativamente, levando ao caos o país”, alertou a professora.