Dramaturga escocesa que escreveu peça com atriz trans lamenta retaliação em Garanhuns…

A dramaturga escocesa Jo Clifford, autora da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, publicou uma carta aberta sobre os acontecimentos em torno do espetáculo no Festival de Inverno de Garanhuns de 2018. Com mais 80 obras em seu currículo – entre peças originais e adaptações -, a artista lamentou a censura sofrida pela adaptação e criticou a organização do festival, a Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e o prefeito Izaías Regis. O texto foi publicado no blog pessoal da escritora neste domingo (29).

ENTENDA

O enredo da peça, que imagina o que aconteceria se Jesus voltasse à terra como uma mulher trans, foi considerado uma “blasfêmia” pela comunidade evangélica do município do Agreste. O espetáculo estava na programação oficial do festival, mas foi retirado após críticas de conservadores e um imbrólio judicial envolvendo desembagadores pernambucanos. A obra foi encenada de forma independente, com verba arrecada através de uma vaquina online. A segunda apresentação – que seria a oficial do festival – foi marcada por tumulto e tensão: agentes recolherem luz, som, toldo e cadeiras, que serviriam de apoio ao espetáculo e que pertenciam à Fundarpe.

Confira a carta na íntegra:

“Epitáfio a um festival que colabora com seus censores

Ontem fiquei muito aliviada e feliz que minhas queridas amigas e colegas Renata Carvalho e Natalia Mallo e nossa companhia de teatro irmã tenham escapado em segurança do perigo que corriam quando apresentaram minha peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu no festival de inverno da cidade brasileira de Garanhuns (PE).

E eu estava orgulhosa por elas terem se saído tão bem em meio ao caos e ao perigo de sua performance final. Elas se posicionaram de forma incrivelmente poderosa e corajosa em nome dos direitos humanos e da liberdade artística de expressão.

Eu ainda estou muito orgulhosa delas hoje. Orgulhosa, também, de que trabalhemos juntas e de que a versão brasileira da peça seja nossa criação conjunta. Mas também estou furiosamente raivosa. A maneira como elas foram tratadas por este festival e esta cidade é uma desgraça total.

Que tipo de festival é este, eu me pergunto, que opera sob o slogan “Um Viva à Liberdade”; que convida uma peça a fazer parte dela, e então retira abruptamente o convite no último minuto porque supostamente ofende a igreja cristã. É assim que se celebra a liberdade?

E que tipo de festival é este que, tendo sido informado de que sua retirada de convite é ilegal, cancela seu cancelamento, reinsere a peça em seu programa e, em seguida, retira-a novamente, assim que a sessão está começando?

Que tipo de festival é este, que então fica parado enquanto a polícia armada chega em vans blindadas, corta a energia do sistema de som da produção, corta a eletricidade de sua iluminação? Uma força policial que primeiro tenta bloquear o acesso do público ao teatro, e que, não conseguindo, tira os assentos do público e remove a cobertura do teatro, forçando platéia e intérprete a suportarem a chuva torrencial?

Que tipo de festival é este, que não só não protege suas artistas, mas também literalmente desmonta seu espaço de performance enquanto elas estão se apresentando?

Este festival tem um nome. Chama-se Festival Internacional de Garanhuns, FIG. E nenhum artista que se respeite jamais deveria concordar em se apresentar lá novamente.

E que tipo de prefeito, eu me pergunto, tendo a oportunidade de receber artistas e público no festival de arte de sua cidade e a oportunidade de apresentar sua cidade como um lugar diverso, seguro e acolhedor… Escolhe, ao invés disso, transmitir e celebrar preconceito e ódio?

Este prefeito tem um nome: Izaías Regis. E ele cobriu sua cidade de ignomínia e vergonha.

E que tipo de juiz de uma alta Corte, eu me pergunto, concede uma liminar proibindo a performance de uma peça e mostra em seu julgamento uma total ignorância do significado e do conteúdo da peça?

Que tipo de juiz de uma alta Corte distribui um julgamento que contradiz as leis e a Constituição de seu próprio país? O país cujo sistema legal ele deveria estar sustentando?

Que tipo de juiz de uma alta Corte poderia ser tão ignorante e tão preconceituoso a ponto de fazer isso?

Este juiz também tem um nome: [o desembargador] Roberto da Silva Maia. Ele é uma total desgraça para sua profissão.

E que tipo de líder religioso, eu me pergunto, tão manifesta e descaradamente falha em proteger e defender as vítimas do preconceito em sua diocese? Então, desgraçadamente, engana seu rebanho, ao falhar em defender o único mandamento que Jesus disse estar no centro de todo o seu ensino?

É o mandamento de amar o próximo como a si mesmo, dom Paulo Jackson Nóbrega de Sousa, bispo de Garanhuns. Por favor, pense nisso.

E quanto a você, Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e Região, Jesus conhecia os semelhantes a vocês.

Ele conhecia o seu tipo muito bem. Ele nunca denunciou pessoas como eu ou Renata Carvalho. Mas ele denunciou tipos como vocês. Muitas e muitas vezes. Doutores da lei, fariseus, hipócritas. Sepulcros caiados. Corações de pedra. 

Vocês e seu semelhante Jesus crucificado. Assim como vocês ameaçaram crucificar Renata se ela se apresentasse no palco.

Vocês se intitulam seguidores de Cristo, mas vocês são os piores inimigos dele.

Mas obrigada, artistas e público de Garanhuns que levantaram fundos para permitir que nossa peça fosse executada apesar da censura. Obrigada por assistir às duas performances. Obrigada por ficar até o final da segunda apresentação e dar a essas corajosas artistas de teatro as boas-vindas, o apoio e a proteção que o festival tão vergonhosamente não conseguiu dar a elas.

Vocês representam o melhor da sua cidade.

Quanto a você, FIG… Você se lembra da história do evangelho, da figueira em Betânia que não deu a Jesus nenhum fruto? Ele a amaldiçoou e isso fez com que ela murchasse e nunca desse frutos novamente.

Você vai levar essa desgraça ao redor de seu pescoço como uma pedra de moinho.

E na sua forma atual você também murchará e morrerá.

Nenhum bem jamais virá de você novamente.

Jo Clifford”