Dia Internacional da Mulher. Vida e amor com dignidade e cidadania…

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As heroicas conquistas de direitos civis, políticos e sociais das mulheres, alcançadas ao custo de muitas vidas, como as mais de cem sacrificadas num incêndio em fábrica têxtil de York no dia 8 de março de 1857 (há polêmica histórica sobre o dia e o ano em que isso ocorreu) servem para se interrogar nesta data, a cada ano, as causas dessa injustiça reincidente e, ainda hoje, em grande parte, gerando os seus perversos efeitos.

As mulheres empregadas na tal fábrica, exploradas pelos seus patrões em condições e jornadas de trabalho desumanas, salários vis, desrespeito à sua feminilidade e dignidade, não reivindicavam mais do que se reconhece hoje como pressuposto mínimo de qualquer contrato de trabalho feminino, inclusive no que esse impõe de diferenças em relação ao masculino, do tipo de respeito e adequação aos períodos de gravidez e amamentação.

Se ainda agora as/os militantes de defesa dos direitos humanos das mulheres denunciam o frequente descumprimento de leis relativas a essas e outras diferenças, um salário inferior pago à mulher trabalhadora fazendo mesmo que faz um homem, o assédio sexual abusivo e humilhante a que ela está permanentemente sujeita, como outras agressões à sua dignidade, isso ainda se deve muito à uma sociedade predominantemente patriarcal, sujeita à uma cultura predominantemente machista.

Numa coletânea de estudos organizada por Pedro Ribeiro de Oliveira (“Fé e Política”), publicada no ano de 2004 em Aparecida, pela editora Ideias e Letras, um artigo de Leonardo Boff (Fundamento dos direitos humanos: o respeito a todo o ser) procura identificar as causas pelas quais esses direitos sempre sofreram com a sua própria ineficácia. Para o que nos interessa aqui, relativamente às mulheres, pergunta ele:

“Por que esse insucesso? Prescindindo de muitas explicações, podemos dizer que o impasse reside, de início, na persistência do patriarcado. Instaurado nos últimos dez mil anos, sua característica fundamental consiste em colocar o poder, na forma da violência, como eixo organizador de tudo. Marginalizou e tornou invisível a mulher e os valores ligados ao feminino como a visão do todo, a gentileza e o cuidado. Criou o Estado, seus aparatos e a guerra. Projetou um tipo de ciência assentada sobre a violência contra a natureza.”

Continua…

Se “a visão do todo, a gentileza e o cuidado” se refletirem, como devem, em atos de amor, em plena era tecnológica como a nossa, Rose Marie Muraro amplia o pensamento de Boff em “Os avanços tecnológicos e o futuro da humanidade” (Petrópolis: Vozes, 2009). Rose Marie demonstrava então como as mulheres e os homens viviam desde a pré-história em ambiente cooperativo e cultura solidária, todos os mais graves problemas da humanidade aparecendo somente, com efeitos trágicos espacialmente para as mulheres, quando a cooperação foi vencida pela competição, o interesse próprio prevaleceu sobre o interesse comum, a troca comunitária (moeda complementar) foi substituída pelo dinheiro oficial:

“No início dos tempos históricos, quando se inventaram o dinheiro de metal e os juros, começaram as cisões, as guerras como rotina, os impérios centralizados e a competição definida como uma busca do interesse próprio em detrimento do interesse comum.” (…) “As mulheres, no início desses tempos históricos, passam a ser reduzidas ao ambiente doméstico, sendo afastadas do espaço público que fica alocado apenas aos homens, ao contrário dos tempos primitivos em que construíam suas comunidades junto com eles. Estes, por sua vez, cuidavam dos filhos no ambiente doméstico a mesma título que as mulheres.  Nos tempos históricos em que houve essa cisão entre o homem e a mulher, houve também a cisão entre os mais fortes e os mais fracos, apareceu o individualismo…” (…) “Aí se pode dizer que o dinheiro oficial é um dinheiro competitivo e excludente. Como as mulheres que ficaram restritas ao espaço doméstico foram obrigadas a serem solidárias e cooperativas, pois davam à luz e geravam a vida, até os dias de hoje elas preservam esses sentimentos arcaicos/modernos de solidariedade e partilha mais que os homens. A solidariedade e a partilha estão estatisticamente mais nas mãos das mulheres, e a competição e exclusão mas no âmbito masculino. Por isso Lietaer chama as moedas complementares de femininas e o dinheiro oficial de masculino. É nos tempos modernos históricos que a tecnologia começa a ser dominada pelo dinheiro oficial e se torna serva deste, tal como homens e mulheres, as sociedades e as culturas. Antes ela era serva da vida.”

Em ponto pequeno dessa realidade, mas muito significativo, Ana Isabel de Moraes Alfonsin, convivendo com mulheres pobres, mas conscientes e militantes entusiasmadas na defesa do amor, da ternura, do carinho, da sua dignidade e cidadania, de tudo quanto tais valores fundamentam os seus direitos humanos, publicou monografia defendida na PUC/RS em 2001 (“Empoderamento das mulheres de base em movimentos e pastorais sociais no município de Porto Alegre e região metropolitana”).

Com pesquisa de campo onde coletou suas entrevistas com essas mulheres, ela provou como, apesar de toda a herança da cultura machista e opressora que ainda hoje sobre elas se abate, está se verificando em todas um “empoderamento” extraordinariamente ativo de organização e força ético-politica capazes de libertá-las dessa tradição injusta.  Num depoimento colhido em Capela de Santana, em terra conquistada pela reforma agrária, uma assentada de nome Elaine adverte:

“A mulher tem o dom de ter filho, mas ter filho não é um dom só da mulher, é um dom do homem e da mulher e isto não pode ser um limitador. A mulher não é uma reprodutora e nem o homem. O filho vem para dar a continuidade à sociedade e o recado que eu tenho para dar à mulher é: “A educação que ela e o homem dão para o filho, vai ser a continuidade ou a mudança da sociedade. Então a mulher jamais deve deixar de participar das lutas, jamais deve deixar de buscar formação, capacitação, porque assim vai conquistar o espaço dela e assim pode quebrar, na educação do filho e na atuação dela dentro de casa e fora de casa, quebrar este machismo e esta diferença que foi criada durante toda a história e ela e o homem vão ter uma cultura mais igual. O papel da mulher é participar cada vez mais, buscar capacitação, buscar formação, jamais deixar de lutar por uma sociedade justa e igualitária.”

Ana Isabel, ou “Bebel”, ou “Belinha” como muitas/os a conheciam, morreu no dia 16 de abril do ano passado, depois de uma prolongada e muito sofrida doença. A atualidade dessa monografia, de outros escritos, documentos e símbolos históricos das lutas do povo pobre com o qual convivia e guardou, não conseguem dar uma ideia do quanto a sua pungente ausência junto à sua família, às mulheres pobres, às catadoras de material, às crecheiras, às comunidades eclesiais de base, mantêm-na paradoxalmente muito e muito presente. Para um dia como o 8 de março, quando se homenageiam internacionalmente as mulheres, convém recordar as últimas palavras dela: “eu quero doar”. Soam como um eco das muitas outras mulheres que lhe antecederam, uma disposição tipicamente feminina, a ressurreição de um amor tão verdadeiro quanto universal e sem reservas, por isso mesmo capazes de misturar às lágrimas de dor da sua ausência a alegria de toda essa gente, particularmente do seu marido, filhas, filho, neta, netos, por terem partilhado com ela a ventura da sua generosa e santa vida. (Direito Social)