Por: Rodrigo Craveiro – Correio Braziliense – Em Servo do povo, disponível no Netflix, o ator Volodymyr Zelensky interpreta um professor que, de forma inesperada, é alçado à posição de presidente da Ucrânia após seu discurso contra a corrupção viralizar na internet. Em 2019, três anos depois do lançamento da série satírica, o protagonista foi eleito presidente com 73% dos votos. Apesar de ter imitado a ficção, a realidade se mostrou bem mais cruel. Na madrugada de 24 de fevereiro passado, a Rússia invadiu a ex-república soviética. O ator que se tornou chefe de Estado forjou-se líder em tempos de guerra.
Enquanto Kiev era bombardeada pela primeira vez, Zelensky entrava em contato com mandatários de vários países e tentava instilar coragem nos compatriotas. “Ninguém será capaz de convencer-nos ou de forçar-nos a desistirmos de nossa liberdade, nossa independência e nossa soberania. (…) Nós enfatizamos que a Ucrânia não escolheu o caminho da guerra. Mas a Ucrânia se oferece para retornar à paz”, declarou.
Nos últimos 304 dias, Zelensky visitou soldados no front e militares feridos nos hospitais. Esteve em Bucha, local de um massacre de civis. Apelou ao Conselho de Segurança da ONU, ao Parlamento Europeu e às principais lideranças mundiais. Conseguiu o apoio financeiro e armamentista do Ocidente. Na última terça-feira, foi até Bakhmut, cidade disputada pelos russos na região de Donetsk (leste) e ponto crítico da guerra, onde condecorou soldados ucranianos.
Morador de Bucha, o jornalista Yevhen Kizilov, 46 anos, sofreu os horrores da ocupação. Os militares russos invadiram sua residência, levaram o seu pai, Valeriy, 69 anos, até o jardim e o executaram com um tiro na cabeça, durante o massacre de março de 2022. Depois, incendiaram a casa. “Zelensky tem se saído muito bem nas condições da guerra. Ele nomeou os comandantes certos e enviou as mensagens corretas ao mundo. Mas o seu mérito mais importante é o fato de ele ter permanecido na Ucrânia, em 24 de fevereiro. O presidente não fugiu”, disse ao Correio.
“Fiquei impressionado com o fato de que uma pessoa sem qualquer experiência no governo ter sido capaz de governar em condições tão adversas”, acrescentou. Ele destacou o fato de Zelensky ter visitado Bucha no quarto dia depois da libertação da cidade. “Isso mostra que ele se importa conosco. Sempre que discursa ao mundo, Zelensky menciona a tragédia de nossa cidade como exemplo da crueldade do Exército russo. Nossa história ajuda a comunidade internacional a ver a real face horrível de (Vladimir) Putin”, concluiu, ao citar o presidente russo.
Da crítica ao elogio
Antes da invasão, Anton Suslov — especialista da Escola de Análise Política naUKMA), em Kiev — era bastante crítico do governo de Zelensky. “Eu devo aceitar que ele tornou-se um excelente presidente em tempos de guerra. Primeiro, ele mobilizou o apoio internacional. Nos primeiros meses da invasão em larga escala, apelou a quase todos os parlamentos da Europa e a parceiros em portencial”, lembrou à reportagem. “Ele é ousado o suficiente, mas entende os próprios limites e não se intromete em assuntos militares. Tanto que confia no tenente-general Valerii Zaluzhnyi, comandante-chefe das Forças Armadas da Ucrânia.”
Suslov ressalta a habilidade de Zelensky no papel de comunicador. “Todos os dias, ele grava apelos ao povo ucraniano e explica a situação atual. Além disso, visita os soldados no campo de batalha ou as cidades liberadas do jugo russo”, disse. O especialista entende que o presidente despertou na população sentimentos como resiliência e crença na vitória. “Pela minha experiência pessoal, ver Zelensky no centro de Kiev, mesmo nos primeiros dias da invasão, me fez estar certo de que a situação está controlada e que a vitória é prevista.”
Diretor da ONG Eurasia Democracy Initiative, em Kiev, Peter Zalmayev concorda que Zelensky desempenha uma comunicação bastante eficiente com o Ocidente. “Algumas vezes ele é acusado de reclamar e de exigir muito, mas essa é a nossa realidade. Temos um inimigo muito mais forte e, por isso, estamos na posição de pedir sempre mais. Como símbolo da resistência ucraniana, tem feito um ótimo trabalho”, avaliou.
No entanto, Zalmayev não esconde preocupações com a atuação do ex-ator no âmbito interno. Ele aponta que, dentro do país, as atitudes de Zelensky são controversas, incluindo as severas restrições impostas aos homens e a proibição de abandonarem o país. “Se você não tem filhos e se tiver mais de 16 anos, não pode deixar a Ucrânia. Zelensky também usou poderes de guerra para reprimir os opositores e parte da mídia. Ele restringiu bastante o alcance de transmissão da emissora Canal 4, que pertence ao ex-presidente Petro Poroshenko”, exemplificou. Zalmayev teme que, quando as tropas russas se retirarem, o poder de Zelensky se mantenha de forma ininterrupta. “É preciso lembrar que a Ucrânia quer entrar na União Europeia. Para tanto, não podemos manter leis draconianas nem nos equiparar à Rússia.”