Taurino com ascendente em libra e lua em aquário. Quem entende — e acredita em astrologia — pode traçar, em poucas palavras, um pouco da personalidade de David Miranda, deputado federal pelo PSol do Rio de Janeiro. Genioso, de personalidade forte, emotivo, ligado à família e preocupado com os direitos, civis e sociais, das minorias. Negro, favelado, gay, casado com um homem há 14 anos, pai de duas crianças, o parlamentar chegou à Câmara dos Deputados neste ano. A primeira aparição nacional foi em resposta a um tuíte do presidente Jair Bolsonaro, que escreveu “Grande dia”, sobre saída do deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) do país. “Respeite o Jean, Jair, e segura sua empolgação. Sai um LGBT, mas entra outro, e que vem do Jacarezinho. Outro que, em dois anos, aprovou mais projetos que você em 28. Nos vemos em Brasília”.
Suplente de Jean, David assumiu a cadeira quando o colega de partido deixou o Brasil, após ser ameaçado de morte. Desde 1º de fevereiro, ao pisar em Brasília, tem claro para si que terá de travar uma batalha árdua contra o que chama de conservadorismo de direita. Nesta semana, apresenta um projeto nos moldes da Maria da Penha voltado para a população LGBTI+. De voz forte, timbre firme, levemente grave, o deputado gesticula a todo minuto enquanto fala. Ele recebeu o Correio em seu gabinete, no Anexo III da Câmara dos Deputados, onde, em uma hora e meia, falou sobre família, racismo, homofobia e chorou ao relembrar a morte da melhor amiga, a vereadora Marielle Franco, executada a tiros de fuzil no Rio de Janeiro, há pouco mais de um ano. Confira os principais trechos da entrevista a seguir:
Como foi a sua infância? É de lá o seu apego às causas sociais?
Eu não conheci o meu pai e minha mãe biológica morreu quando eu tinha 5 anos de idade. Minha mãe afetiva é minha tia, irmã dela, que me adotou. Nós temos uma ótima relação. Nos falamos constantemente. Ela está muito feliz com os netos. Cresci no Jacarezinho e crescer em comunidade é muito diferente. Hoje eu moro num bairro onde eu não conheço nenhum dos meus vizinhos. Quando você mora na favela, você conhece todo mundo que mora na sua rua, na rua de baixo, na outra rua… Você tem um senso de comunidade muito diferente. E passa a se importar muito com o ser humano.
Você começou a trabalhar muito cedo?
Comecei a trabalhar entregando panfleto para um dentista da comunidade. Aos 9 anos, consegui um ‘emprego’ em uma locadora de videogame. Meus amigos e eu sempre ficamos muito ali naquele ambiente. Até hoje gosto de jogar. Quando estou de folga passo muito tempo jogando com meus filhos. Depois, trabalhei em uma lotérica, como faxineiro, officeboy, fui operador de telemarketing. Aos 18 anos virei gerente em uma loja. Todas oportunidades me foram dadas por um homem que é uma figura paterna para mim. Sou muito grato a ele.
Quando você saiu do Jacarezinho?
Saí de casa aos 13 anos de idade. Eu tinha um amigo que era mais velho, e ele era muito arrogante. Lembro-me que ele falou que eu nunca conseguiria sobreviver fora do Jacarezinho. Eu o admirava e foi exatamente aí que eu me senti desafiado, e tive de sair. Ele era mais velho, estudava direito, meio metido a filósofo. Fui morar com meus primos em outra comunidade, onde havia batidas policiais. Bem diferente da realidade que eu vivia. Mas deu tudo certo.
Quando você conheceu o seu marido, o jornalista Glenn Greenwald?
Eu conheci o Glenn na Farme de Amoedo, no Rio de Janeiro. Eu tinha 19 anos e estava jogando futevôlei com um grupo de amigos. Alguém chutou uma bola e bateu na capirinha que ele estava bebendo. Pedi desculpas e depois ficamos conversando. Fomos jantar no mesmo dia à noite. Uma semana depois estávamos juntos, morando juntos e estamos aí, até hoje. Há 14 anos ele é o amor da minha vida.
… com quem você tem dois filhos. Você sempre quis ser pai?
Sempre! Hoje os meninos têm 9 e 11 anos. Adotamos eles há um ano e meio. E os moleques são perfeitos para nós. O João Vitor, que é o mais velho, é uma cópia minha. Jogamos videogame juntos, jogamos bola juntos. Ele tem uma inteligência emocional extremamente evoluída. Ele ficou no abrigo muito tempo, teve de cuidar do irmão. Foi um período difícil. Já o Jonathas tem o senso de humor do Glenn. O irmão dele é a figura predileta para ele perturbar no mundo. Eles têm muita facilidade com línguas, conversamos em inglês em casa. Agora eles vão ter dupla cidadania. Fico feliz porque eles vão ter muitas oportunidades na vida. Espero que melhoremos muito o Brasil para podermos dar um futuro saudável para os dois e para todas as crianças que estão aí.
Como é a interferência do Glenn no seu mandato?
A gente é casado, né? A gente troca muita ideia sobre as coisas que acontecem. Diretamente com o mandato, ele não tem nenhuma influência. Mas, quando tenho qualquer problema aqui, corro para o meu porto seguro.
Como tem sido sua relação com Brasília?
Tem sido impossível criar uma ligação com Brasília (risos). É reunião atrás de reunião. Não consigo sair nesta cidade. De vez em quando, depois do expediente, a gente tenta ir a algum bar para tomar uma cerveja. Só.
Há racismo dentro do Congresso Nacional?
Há racismo dentro do Congresso, sem sombra de dúvidas. Da forma como te olham, te avaliam. Eu passei 19 anos alisando meu cabelo. Parei de alisar depois de uma aposta que eu fiz com a Mari (a vereadora Marielle Franco). Falei que ia raspar a cabeça e pintar a barba de louro. Foi ela quem pediu pra eu deixar o meu cabelo crescer natural. As pessoas ainda me perguntam: ‘porque você não corta o cabelo? Porque não arruma o cabelo daquele jeito que você fazia, era tão bonito?’. Você não sabe quantas vezes eu queimei meu couro cabeludo. Quanto sacrifício eu tive de fazer para me encaixar em padrões. Eu já fui parado várias vezes aqui dentro. Há uma diferença muito grande no tratamento que um homem branco recebe e o que um negro gay recebe.
Você assumiu uma vaga que era do ex-deputado Jean Wyllys (PSol). O seu mandato terá influência dele?
Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, eu consegui fazer várias coisas que mudaram aquela Casa para sempre. Cobrimos a Câmara com uma bandeira imensa de arco-íris e a população LGBT conseguiu se sentir representada. Passamos o projeto do nome social para travestis e transgêneros na cidade do Rio de Janeiro, sem contar o projeto de assistência à população LGBT. Eu era presidente da frente parlamentar contra o estigma de pessoas convivendo com HIV/Aids. Também era presidente da comissão contra a intolerância religiosa. Da mesma forma que eu fazia isso tudo lá, eu vou fazer aqui. Vou lutar contra todos esses estigmas colocados sobre pessoas como eu, como o Jean. A gente sofre na nossa sociedade há muito tempo e aqui, nesta Casa, não será diferente. E eu não vou dar espaço para certos tipos de pessoas agredirem nossa população.
E os projetos?
A gente vai apresentar na semana que vem um projeto que está sendo trabalhado em várias mãos, com vários grupos e organizações. Ele é nos moldes da Maria da Penha. Com ressocialização, medidas educativas. Tudo para que a gente possa melhorar a sociedade para poder entender que não existe uma complexidade com a população LGBTI . Eu acho que o que a gente vai trazer para cá é isso: diálogo. No RJ, eu consegui ter diálogo com o Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), com o Alexandre Isquierdo (DEM-RJ), com o Otoni de Paula (PSC). Eu fiz eles entenderem que o nome social era simplesmente o que eles utilizavam, por exemplo, como o posto de pastor. Isso que eu vou fazer aqui. Eu vou conversar também com aquela galera de sempre, que vai bater o pé, reclamar. Inclusive com o Marco Feliciano (PSC-SP). Vou ter muito chão pela frente, eu sei. Mas o mais importante é não ter mais notícia de uma travesti com um coração arrancado. Não ter a notícia de um jovem assassinado a paulada dentro de uma universidade no Rio de Janeiro. Se for preciso engolir alguns sapos, como ocorreu no Rio, eu vou engolir.
Essa diplomacia é diferente da forma como o Jean fazia política?
Eu vou ser tão assertivo quanto o Jean. Eu sou o cara que fica do lado de fora da Câmara tomando porrada e gás de bomba junto com os servidores. Eu fui atropelado no dia da greve geral. Eu chorei no microfone no dia em que a Dandara foi assassinada. Eu vou ser esse cara que vai gritar também e fazer esse enfrentamento. Mas eu tenho consciência da minha posição parlamentar também. Eu tenho de estar aqui fazendo diálogo com a camada que eu possa ter diálogo. Para fazer o serviço que eu fui eleito, para melhorar a vida das pessoas. No Rio de Janeiro, hoje a gente vive a maior crise do estado. Eu fiz o projeto que assegura que os servidores pensionistas e aposentados sejam prioridade máxima na folha de pagamento do município. Nós vimos professores e servidores chorando por não terem comida para colocar dentro de casa. Que estavam sendo despejados porque não tinham dinheiro para pagar aluguel. Eu vou, sim, utilizar minha voz alta. Vou gritar. Mas eu acho que a diplomacia também é um caminho eficaz.
Hoje você recebe mais vaias ou aplausos?
Mais aplausos, sem dúvida. É incrível a quantidade de carinho que tenho recebido. Eu sou parado em aeroporto, na padaria. Depois da morte da Marielle, então…
Onde você estava quando recebeu a notícia da morte da Marielle?
Eu estava em casa… Eram 21h e pouco quando meu assessor me ligou me perguntando onde eu estava e, quando eu respondi, ele me disse: mataram a Marielle. Eu fui para o quarto, chorei, falei com o Glenn. Chorei muito. Decidimos que era melhor eu ficar em casa, pois não sabíamos o que estava acontecendo. Pela manhã, fomos para a Câmara, todo mundo ainda sem saber o que estava acontecendo. Quando eu vi a Mônica (Monica Benício, viúva de Marielle), nos abraçamos e choramos muito, mas ela estava muito forte. A pior parte foi carregar o caixão. Carregar o caixão dela foi… indescritível. A gente passava com o caixão e as pessoas começavam a cair de joelhos.
Você fala com a Mônica com que frequência hoje?
Todos os dias. Eu e Marielle saíamos aos fins de semana. Bebíamos cerveja, conversávamos muito. Eu e Mônica nos conhecemos através da Mari. Desde o primeiro dia em que nos conhecemos, tivemos muita afinidade. E até hoje ela me chama de marido. Em todos os momentos, fiquei ao lado dela. Fomos à OEA (Organização dos Estados Americanos), em maio do ano passado, porque sabíamos que a investigação aqui seria complicada.
Você já recebeu ameaças depois que assumiu a cadeira na Câmara Federal?
Já. Eu estava andando na Lapa — antigo bairro boêmio do Rio — quando ouvi dizerem: “Aquele viado ali que a gente tem que matar agora”. Isso, depois do assassinato da Marielle. Já recebemos ataques cibernéticos, que foram, inclusive, protocolados na Polícia Federal. Falam do Glenn, da minha família, de meus filhos… E a gente sabe que esses caras mataram uma companheira nossa. O Jean teve de sair do país porque o nível de ameaça que ele estava recebendo extrapolou qualquer limite.
Quais os seus maiores medos hoje?
Hoje o meu maior medo é fazerem qualquer coisa com meus filhos. Eu temo pela minha família inteira, mas eu e Glenn nos expomos por causa do nosso trabalho. Meus filhos, não. Fazer oposição não vai ser fácil. E temo muito pela população brasileira, por não conseguir enxergar o trabalho que estamos fazendo agora, que é tentar resgatar qualquer pessoa, independente de quem votou, para mostrar que o pacote do Moro é uma ameaça a toda periferia, principalmente para a juventude negra do país. Que a reforma da Previdência vai acabar com a esperança e o futuro da população. Meu maior medo é a população não tomar de volta a democracia, que está aí quebrada. Enquanto a gente não encontrar os mandantes do assassinato da Marielle, a gente não pode falar que a gente vive numa democracia. Enquanto a gente não descobrir quem são os caras que ameaçaram o Jean, a gente não pode dizer que a democracia está íntegra.
Você tem uma avaliação dos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro?
Esse governo é uma ameaça enorme para a democracia. A falta de entendimento político que a base dele tem é assustadora. Vemos hoje o que ele pode fazer de dano pela estupidez e pela falta de experiência, tanto nas relações internacionais, mas também no âmbito nacional, onde ele consegue fazer, por exemplo, que estruturas consigam se colidir. Mas, apesar da preocupação, é bom ver o espaço que ele abre para a oposição para fazer uma desconstrução dele, de debater democraticamente. Nós vamos mostrar que essa relação de proximidade da família Bolsonaro com a milícia é um absurdo.
Na sua opinião, a que se deve essa onda conservadora no mundo?
Acredito que é reflexo da globalização e da má utilização da internet. Acho que essa onda conservadora tende a ser uma força contrária ao progressismo. Nós vemos negras em capas de revistas conceituadas. A representatividade está aí e há uma luta por esses espaços. Quando você tem movimentos progressistas, e isso a própria história mostra, existe sempre um momento de retrocesso e conservadorismo daqueles que tentam se manter no topo. E isso vai se renovar com padrões e na tentativa da estigmatização de grupos. Os de cima sempre vão querer manter os de baixo embaixo. (Correio Braziliense)