Por Vitória Floro/Folha de Pernambuco – A morte, inevitável e misteriosa, atravessa todas as culturas e crenças. Para uns, é fim. Para outros, apenas passagem, retorno e renascimento.
Às vésperas do Dia de Finados, celebrado neste domingo (2), a Folha de Pernambuco ouviu representantes de diferentes tradições religiosas sobre como cada uma compreende a finitude e o que há, ou pode haver, depois dela.
Catolicismo
Para o monsenhor Luciano Brito, vigário-geral da Arquidiocese de Olinda e Recife, a morte é, antes de tudo, “Páscoa para a verdadeira vida”.
“Tudo isso porque Jesus é vencedor da morte e do pecado. A ressurreição de Cristo nos dá a convicção de que a morte não é fim, mas início da vida eterna”, afirma.
“Não é um culto de saudade, mas uma celebração de fé. As pessoas vão aos cemitérios, levam flores, acendem velas, rezam. Não veneramos os mortos, mas afirmamos a nossa crença de que eles vivem em Deus”.
Na tradição católica, o corpo é sepultado, mas a alma, criada por Deus, “repousa na eternidade”.
O Vigário destaca que a convicção na vida eterna vem das escrituras da Bíblia Sagrada.
“Jesus disse ao ladrão na cruz: hoje mesmo estarás comigo no paraíso. Assim, acreditamos na ressurreição da carne e na vida eterna”, explica. O purgatório, acrescenta, é visto como um tempo de espera, “onde as almas aguardam a entrada definitiva na glória celeste”.
Os ritos católicos de despedida, como o velório e a missa, cumprem, segundo o vigário, uma função comunitária e pedagógica.
“Eles nos ajudam a expressar a dor da perda, mas também a reafirmar a esperança cristã. A oração e a presença fraterna são o bálsamo que enxuga as lágrimas”.
Para ele, a mensagem essencial da fé católica diante da morte está nas palavras de Jesus a Marta, diante do túmulo de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra,
Espiritismo
No espiritismo, a morte tampouco é entendida como fim, mas como um intervalo natural entre uma vida e outra.
“Sabemos que é só o corpo material que morre, pois somos espíritos imortais”, explica Cristina Pires, vice-presidente da Federação Espírita Pernambucana (FEP).
“O luto e a despedida são vividos com menos pesar, porque sabemos das possibilidades do reencontro. As lágrimas são naturais e a saudade é real, mas compreendemos que a separação é passageira”.
A doutrina codificada por Allan Kardec no século XIX baseia-se na ideia de reencarnação e evolução espiritual.
“O espiritismo nos diz de onde viemos, o que estamos fazendo aqui e para onde vamos. Quando compreendemos isso, o medo da morte diminui, e o sentido da vida se amplia”, diz Cristina.
A comunicação entre vivos e mortos, princípio conhecido da doutrina, é vista como um processo natural.
“A Doutrina Espírita apenas deixou mais lógico e compreensível como se processa essa comunicação. Saber das possibilidades do reencontro nos enche de esperanças”, explica.
Nos centros espíritas, pessoas enlutadas procuram conforto.
“Acolhemos com carinho e responsabilidade. Muitos querem ser ouvidos, outros buscam respostas. Compartilhamos o que compreendemos, mas não prometemos notícias. Como dizia Chico Xavier, o telefone só toca de lá para cá e tudo acontece segundo a vontade de Deus”.
Para os espíritas, o Dia de Finados é tempo de reflexão sobre a vida.
“Convidamos os fiéis a pensar em como estamos vivendo, não em como morremos. É o momento de olhar mais nos olhos, escutar mais, sorrir mais e amar mais”, resume Cristina.
Candomblé
No Candomblé, a morte é vista como um processo de encantamento, uma passagem do mundo material para o espiritual.
“Nós não enxergamos a morte como um fim, mas como encantamento”, explica Mãe Miriam de Xangô, do terreiro Aganjú Aséobà, em Afogados, na Zona Oeste do Recife.
Quando alguém morre, explica, é realizado o ritual do Axexê, trinta dias após o falecimento.
“É a despedida do espírito da Terra. Servimos as comidas e bebidas que a pessoa gostava, colocamos suas roupas, guias e objetos pessoais. Alimentamos sua última estadia entre nós antes de seguir”.
Após essa travessia, o espírito é chamado de egun.
“No Candomblé, quando nascemos, recebemos um nome sagrado, o Dijina. E, quando encantamos, recebemos outro, próprio do mundo espiritual”, detalha.
Os Eguns são lembrados todos os anos, em oferendas e rituais.
“A morte não rompe o laço com quem amamos, apenas muda a forma de se relacionar. Continuamos cultuando, rezando e lembrando.”
O culto aos ancestrais é central na religião.
“A orixá Oyá, ou Iansã, conduz as almas entre o mundo dos vivos e dos mortos”, diz Mãe Miriam. “As mulheres não participam diretamente dos rituais do Balé, espaço sagrado dos Eguns, mas preparam as comidas e elementos”.
Ela reconhece que o medo da morte existe, mas ressalta que o conforto vem em saber que os mortos se transformam em ancestrais que guiam e motivam os vivos.
“No Candomblé, o que morre é apenas a matéria. O espírito continua vivo, encantado, sendo cuidado pelos orixás. Oyá e Nanã acolhem e conduzem essa travessia. A morte não é castigo, é passagem”.
Quanto ao que vem depois da morte, Mãe Miriam explica que não existe a ideia de uma punição por erros praticados em vida.
“Se fizermos algo de errado em vida, vamos pagar por esse erro ainda em vida, e não depois da morte. Se desobedecermos nosso Orixá, sofreremos aqui, porque ele quer nos ensinar a viver bem. Nosso orixá é justo, mas também é amor”.
Budismo
A filosofia budista entende a morte como parte natural e inseparável da existência.
“Nada é mais definitivo do que a morte, mas ela não é o fim de tudo”, explica Pablo Pimentel, representante da comunidade Soka Gakkai no Recife.
Ele lembra que a busca de Buda começou com o desejo de compreender os quatro sofrimentos da vida: nascimento, envelhecimento, doença e morte.
“Para o budismo, a morte é apenas o ponto de partida para um novo renascimento. Viver com essa consciência nos ajuda a não nos desesperamos diante dela”.
Os rituais também refletem essa visão cíclica. O Shoko, por exemplo, é o ato de oferecer incenso ao falecido em memória de sua felicidade eterna.
Já as cerimônias do sétimo e quadragésimo nono dia simbolizam oportunidades de renascimento.
“O ser humano tem a chance de renascer a cada sete dias, e o 49º marca o fim do luto, quando o período de renascimento se completa”, explica.
O luto, segundo Pimentel, é vivenciado com serenidade.
“A alegria de viver demonstrada pelos familiares se transforma em alegria para o falecido. A boa sorte conquistada pela família é, em si, a oração mais efetiva para o repouso do espírito”.
A crença na impermanência e no desapego ajuda os praticantes a aceitar a morte e a valorizar o presente.
Protestantismo
No cristianismo evangélico, a morte também é entendida como passagem, mas a salvação depende da fé em Cristo.
“Sabemos que o fim humano é a morte, mas acreditamos na vida eterna para aqueles que viveram com Cristo aqui na Terra”, afirma o pastor Joaquim do Amaral, presidente da Igreja de Cristo no Brasil.
Para ele, o destino pós-vida é definido pela relação pessoal com Deus.
“A salvação não vem por mérito próprio, mas pela graça de Deus. O sacrifício de Jesus na cruz foi único e perfeito, basta crer e aceitar”, explica.
Sobre o Dia de Finados, ele observa: “É uma data que tem significado para a memória dos que partiram, mas para nós, evangélicos, a oração deve ser feita pelos vivos. Depois da morte, o destino já está determinado”.
Os ritos evangélicos são simples e voltados ao consolo.
Fé originária
O escritor Kaíke Nanne, autor do livro Como Dançar com os Mortos, passou trinta anos estudando rituais fúnebres e práticas ancestrais em diferentes povos do mundo.
“A ideia da dança com os mortos pode ser simbólica – uma relação ativa com os ancestrais – ou literal, como no ritual Famadihana, em Madagascar, onde parentes dançam com os corpos de seus mortos antes do novo sepultamento”,explica.
Kaíke defende que o Ocidente reduziu a morte ao silêncio e à ruptura.
“Nos habituamos a vê-la como fim, mas para os povos tradicionais ela é parte do ciclo da vida. Nesses lugares, o tempo não é linear, é uma espiral. Quem morre continua na comunidade, participa das decisões, aconselha, orienta. É o que chamo de ancestralidade ativa”.
Kaíke lembra que o medo da morte está ligado à forma ocidental de compreender o tempo.
“Somos filhos do tempo. Já os povos originários são filhos da terra, do vento, da floresta. Para eles, pouco importa o transcurso do tempo, o importante é manter o mundo funcionando”.
Ao refletir sobre o Dia de Finados, o escritor sugere uma provocação.