Do alívio da dor em pacientes oncológicos à prevenção de convulsões e ao tratamento de psoríase, substâncias extraídas da Cannabis sativa são cotadas como promissoras para diversas condições. Com a liberação do uso medicinal e recreativo em 33 países, há interesse crescente da indústria farmacêutica em investigar os potenciais de uma planta cultivada há milênios. Porém, o estudo e a utilização dos canabinoides ainda esbarram em questões legais, na baixa quantidade das dezenas de compostos da cannabis e na complexidade estrutural, fatores que limitam a síntese dos produtos químicos em larga escala. Da levedura de cerveja, contudo, poderá vir a solução.
Em um artigo publicado na revista Nature, pesquisadores da Universidade da Califórnia em Bekerley, nos Estados Unidos, relatam que, com bioengenharia genética, conseguiram sintetizar cinco canabinoides. A produção inclui um dos mais visados devido à variedade de aplicações medicinais, o THC. Para tanto, não foi necessária nem uma folha de cannabis. As substâncias foram produzidas a partir do Saccharomyces cerevisiae, um fungo usado na fabricação de pão, cerveja e biocombustível. Segundo os autores, a levedura, que só precisa de açúcar para ser cultivada, é uma forma barata e fácil de se conseguir canabinoides, hoje extraídos diretamente da folha da Cannabis sativa.
“É uma forma mais segura e ambientalmente correta de se produzir canabinoides”, diz Jay Keasling, professor de bioengenharia e líder da pesquisa. Ele explica que, enquanto alguns extratos da maconha são bem estudados — caso do próprio THC —, a planta tem centenas de substâncias com potencial para a indústria farmacêutica basicamente desconhecidos. Isso porque ocorrem em pequenas quantidades, dificultando sua obtenção. “Meios de cultivo como a levedura, que é uma fonte pura, permitem obter vários canabinoides raros que podem resultar em novas terapias ou mesmo sintéticos, que não existem na planta naturalmente.”
Indústrias verdes
Devido à abundância e à simplicidade de cultivo, as leveduras têm sido usadas como meio de cultivo de substâncias e fármacos como o hormônio de crescimento humano, a insulina, fatores de coagulação e, de forma ainda experimental, de morfina e outros opioides. Há muitos anos trabalhando com a biologia sintética, Keasling diz que leveduras e bactérias são como indústrias farmacêuticas “verdes”, que dispensam processos da indústria química conhecidos por deixar subprodutos tóxicos e, muitas vezes, poluentes no meio ambiente.
“O cultivo de cannabis é um exemplo de indústria que gasta muita energia e é destrutiva ambientalmente”, diz o biólogo. Ele afirma que fazendas da Califórnia que plantam maconha contaminaram riachos com escoamento de pesticidas e fertilizantes, além de drenar as bacias hidrográficas, porque a cannabis exige muita água. Além disso, para cultivá-la, usa-se estufas equipadas com luzes e ventiladores. Em consequência, um estudo estimou que a indústria de cannabis da Califórnia responde por 3% do uso de eletricidade do estado. O crescimento interno do plantio causou apagões em algumas cidades, e o consumo de energia pode adicionar mais de US$ 1 mil ao preço de um quilo de erva.
Keasling conta que, em seu laboratório, já produziu, com a levedura, a droga antimalárica artemisinina, transformou resíduos vegetais em biocombustível, sintetizou sabores e aromas para a indústria de alimentos e cosméticos e produtos químicos usados na fabricação de novos materiais. Porém, ele admite que utilizar a técnica que domina para obter canabinoides foi um desafio científico mais interessante. “Quando você lê sobre casos de pacientes que têm convulsões e são ajudados pelo CBD (canabidiol), especialmente crianças, percebe que há algum valor nessas moléculas e que produzir canabinoides em leveduras pode realmente ser ótimo”, diz. (Correio Braziliense)