Um dos grandes legados da Constituição de 1988, motivo de orgulho nacional para muitos, o SUS (Sistema Único de Saúde) nunca esteve sob escrutínio tão intenso como durante a pandemia.
Tem sido festejado por sua capacidade de responder à crise na mesma medida em que criticado por suas limitações. Como pano de fundo, corre uma discussão que tem animado os adeptos de uma visão mais liberal sobre a saúde: como inserir o setor privado em sua operação.
Especialista em gestão da saúde, o curitibano Silvio Guidi é um dos que apontam a existência de um certo preconceito contra a presença do setor privado na área. Isso tem ficado mais claro, diz ele, no debate sobre a vacinação contra a Covid-19, em que empresas e clínicas privadas buscam ter um papel.
“Na área da saúde, um real gasto no setor privado é um real a menos que onera o setor público. Esse raciocínio vale também para a vacinação na
Mestre e doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP, ele tem 15 anos de experiência com administração hospitalar e dois livros publicados sobre gestão da saúde.
Não deveria haver problema, diz ele, com a compra de vacinas pelo setor privado, desde que não seja um processo predatório com relação ao cronograma de prioridades de imunização de grupos emergenciais definido pelo setor público.
Em outras palavras, vacinados os trabalhadores na linha de frente na área da saúde e categorias vulneráveis como idosos e indígenas, o setor privado deveria entrar com tudo na estratégia de imunização.
“Precisamos de esforços para proteger os mais vulneráveis. Depois que você resolve esses problemas, você volta para uma situação típica da área da saúde, em que há demanda para serviços públicos e privados”, afirma.
Nas últimas semanas, têm proliferado iniciativas de envolvimento do setor privado na aquisição de vacinas. Primeiro foi a Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (ABCV), que anunciou a intenção de comprar doses da indiana Bharat Biontech.
Depois, veio a tentativa de empresas brasileiras de grande porte de comprar cerca de 35 milhões de doses da vacina da AstrZeneca para imunizar seus funcionários, com a contrapartida de doação de metade para o SUS.
Ambas as tentativas receberam uma saraivada de críticas, acusadas de estarem furando a fila do calendário oficial de vacinação e privilegiando uma elite que teria acesso à proteção de maneira antecipada. No momento, estão em suspenso, esperando o melhor momento para voltarem à carga.
Para Guidi, esse tipo de raciocínio de público contra privado é simplista. É interesse de toda a sociedade, afirma, que o ritmo de imunização seja o mais rápido possível, para acelerar a imunização coletiva, que é o que derrota o vírus.
“Colocar todo mundo na fila única não resolve o problema da justiça social. Você pega a população que tem condição de fazer a vacinação privada, e isso ajuda a aumentar a imunização coletiva. Beneficia também as pessoas sem condição financeira”, afirma.
O que falta, diz ele, é uma estratégia de comunicação eficiente para deixar claras as vantagens de se conjugar vacinação pelos setores público e privado.
“Tem que haver um marketing republicano, legítimo. E não o marketing populista, de não permitir a vacinação privada. É preciso levar em conta quem mais está sofrendo com essa situação. É o pobre que pega o ônibus que vai sofrer. Discursos pouco pragmáticos não ajudam”, afirma.
Um exemplo do que ele chama de discurso pouco pragmático, e muito ideológico, veio na reação que se seguiu à menção, no ano passado, de possíveis parcerias entre os setores público e privado na gestão de postos de saúde. “A reação foi desmedida. Era apenas um estudo de viabilidade”, afirma.
Mas isso é revelador, diz ele, sobre a dificuldade de se aceitar a presença do setor privado em alguns setores. “Qual a diferença entra a concessão de uma rodovia e de um hospital? No caso da rodovia, a conta é paga apenas por quem a utiliza, com pedágios. Numa UBS [Unidade Básica de Saúde], é paga por todo mundo. O setor privado equipa, constrói e presta serviço”, afirma.
Ele afirma que aos poucos tem diminuído a resistência à presença do setor privado em áreas da chamada “bata cinza”, ou seja, serviços como administração, limpeza e segurança de unidades de saúde. O próximo passo, diz, é que isso se estenda para a “bata branca”, as atividades de saúde propriamente ditas.
Outro problema, afirma, é uma certa autossuficiência de órgãos regulatórios como a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), responsável pela aprovação de medicamentos e vacinas. Não há, diz Guidi, uma abertura a visões de mercado e do setor privado.
“A Anvisa não pode ser tão fechada que você não consiga capturar as melhores opiniões de especialistas, da sociedade, do mercado privado, das farmacêuticas”, diz.
Em resumo, diz ele, o Brasil tem muito medo do setor privado, e não apenas no caso da Anvisa.
“Quando é nomeado um diretor do mercado para uma agência, sempre se fala que essa pessoa está indo atender um interesse de mercado ou de empresas. Não é uma questão de atender aos interesses do mercado, mas sim de ter uma visão do mercado”, afirma.