“Primeiro associam a palavra(sapatos) a um incômodo. Uma sola emborrachada de tecido duro. Que aperta. Mas crianças crescem e, com elas, a capacidade cognitiva se alarga. Calçar-se é, sim, vestir um incômodo, mas é também uma troca. Com sapatos vamos a festas. Com os tênis vamos à quadra. Calçar-se é sair de casa protegido das surpresas que rastejam.
Vendo uma criança correr, podemos imaginar quantas certezas cabem em seu entendimento. Não devem ser muitas. Uma delas é que tênis, ou sapatos, não foram feitas para a água. Outra é que, ao fechar as portas de casa, voltaremos. Pode levar dias. Pode levar segundos. Mas voltaremos.
Não sabemos o que pensou quando fechou a porta de casa pela última vez. Sabemos que pensava. Não sabemos se seus pais o agarraram chorando, como fez um outro pai, em desespero desproporcional ao seu vigor físico, ao segurar o filho e a filha em outro bote em direção à Europa. Não sabemos se ele pensou se veria o mar. Se já sonhava com o mar. Se sabia de sua dimensão traiçoeira. Não sabemos se associou o traje a um passeio. Não sabemos o que pode saber uma criança quando os pais fogem da guerra.
A boca beijava a areia e a água já não tinha gosto de sal. Não tinha gosto algum. Antes de sair de casa, aquela criança calçou o tênis, vestiu uma bermuda e uma camiseta. Não saberemos jamais em que momento dormiu.”(A guerra é uma criança que calça os sapatos para morrer no mar – MATHEUS PICHONELLI)