Ulysses Gadêlha/Folha de Pernambuco
A camisa amarela da seleção brasileira, com o ícone da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) no peito, sempre esteve no imaginário dos torcedores como um símbolo de orgulho da “Canarinha”. As cinco estrelas sobre o escudo remetem à trajetória da mais exitosa das seleções nas Copas do Mundo. Entretanto, enquanto símbolo nacional, a camiseta amarela veio a se tornar objeto de disputa política, desde que manifestantes foram às ruas pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2015 e 2016. Agora, durante a Copa da Rússia, aqueles torcedores que não se identificam com a pauta do “Fora Dilma” estão optando por versões alternativas da amarelinha, sob justificativa de não serem confundidos com os “coxinhas” – denominação jocosa atribuída a simpatizantes da direita. Analistas apontam que esse curioso fenômeno é um signo de que, mesmo em eventos culturais como a Copa, o acirramento político tende a se manifestar.
O professor de História Delcy Vilas Boas, no Recife, é um dos que optou por não usar a camisa amarela, utilizando em seu lugar uma versão vermelha. “Não faço isso pra chocar, a ideia é fazer o contraponto, mostrando que futebol e política podem andar juntos”, esclarece. Delcy adquiriu um modelo cujo o escudo tem apenas o nome “Brasil” e nas costas a expressão “Lula Livre” e o número “13”, fazendo menção às palavras de ordem do PT.
Delcy conta que ainda tem as camisas tradicionais no guarda-roupa e não se sente constrangido em usá-las, já que procura ter seu posicionamento político sempre muito claro. “Esse ano, a gente não sabe se o cara com a bandeirinha do Brasil tá torcendo pela seleção ou pedindo intervenção militar. Termina que as pessoas ficam receosas de serem confundidas com um movimento que não as representa mais ou nunca representou”, avalia.
Esse também foi o caso do publicitário Maurício Victorino e da sua esposa, Iasmin Barbosa, que trabalha com compras no comércio internacional. Segundo Maurício, o casal achou interessante a oportunidade de torcer pelo Brasil e mostrar que não é da “galera do pato amarelo” – em referência às manifestações pela saída da ex-presidente Dilma, onde um enorme pato amarelo simbolizava a expressão “Não vamos pagar o pato”. “Eu gosto bastante de futebol, sempre me animo com Copa do Mundo, só que nesses últimos quatro o pessoal roubou da gente o patriotismo e a camisa da CBF”, alega o publicitário.
A Copa do Mundo, na visão de Maurício, é um momento próprio para discutir política tanto com brincadeiras quanto com coisas sérias. “Na Copa de 2014, as pessoas que foram aos estádios tinham poder aquisitivo alto e usaram aquele momento pra vaiar e xingar a ex-presidente Dilma, como se isso expressasse para o Mundo o sentimento de todos os brasileiros. Agora, eu vou assistir o meu jogo, fazendo a minha crítica e relembrando de ideais de esquerda”, diz”.
Continua…
Oportunidades
Para atender a essas demandas, o engenheiro e professor da UFRPE, Rodrigo Cirilo, teve a ideia de produzir camisas da seleção em diversas cores. “Eu sou militante de esquerda desde a juventude e sempre tive vontade de fazer uma coisa desse tipo. Com o acirramento da política, o pessoal indo pra rua com a camisa amarela, eu vi a oportunidade de botar as camisas vermelhas em contraponto”, explica o engenheiro Rodrigo, que já vendeu mais de 70 camisas inclusive para outros estados. Cirilo criou a marca “Sinistra Leftwear” no Facebook e passou a oferecer modelos com um escudo e o nome do Brasil no peito, fazendo referência a diversas bandeiras da esquerda. Os modelos que mais saem, segundo ele, são os vermelhos com dizeres sobre o comunismo e sobre o PT. “A gente tinha o Ronaldo usando a camisa e dizendo que não tinha culpa dos problemas do País porque votou no Aécio Neves e vimos no que deu”, relata.
Outra ideia que também chamou muita atenção foi a da camisa “É Goooolpeee no Brasil”, que já viralizou nas redes sociais e chega a milhares de modelos vendidos em todo o País. Comercializada no perfil do Instagram “Golpe_Store” e numa loja física no bairro das Graças, o modelo é uma criação da profissional de Relações Públicas Nara Vila Nova e da designer Isabela Faria, ambas do Recife. “A gente começou essa história das camisetas a partir do momento que postei no Facebook dizendo que essa frase seria a minha camisa da Copa e outras pessoas demonstraram interesse”, conta Nara. “O post que começou a circular e a gente começou a receber muitas ligações perguntando se era de verdade. O que eram 100 camisas virou 400, depois 600, agora vão ser mil e a próxima tiragem vai ser 3 mil, um crescimento geométrico “, diz.
Na visão de Nara, o Brasil vive um momento muito triste e delicado, onde muitos associam a camisa amarela a um movimento responsável pela atual realidade política, com uma agenda impopular e escândalos de corrupção protagonizados pelo Governo Temer. “A Copa sempre foi uma festa, mas todo mundo está meio desanimado, todo mundo cabisbaixo, sem energia e essa nossa ideia deu uma recarregada nas baterias”, explica.
História
Objetos como a camisa da seleção brasileira e a bandeira do Brasil são “símbolos flutuantes”, segundo o professor de História da Universidade de São Paulo, Flávio de Campos. “Esses símbolos vão flutuar e ser objetos de disputa e apropriação, dependendo dos atores coletivos e individuais que atuam nas disputas políticas que pulsam na nossa História”, explica o especialista. Há momentos da vida política nacional em que essas figuras acabam sendo capturadas por setores da sociedade em prol de um determinado discurso. As vaias à ex-presidente Dilma nas arenas, em 2014, foi um dos momentos marcantes onde a camisa ficou associada a um espectro político.
O clímax dessa captura dos símbolos nacionais, segundo Flávio, ocorreu durante a votação do impeachment da ex-presidente, em março de 2016, quando fez-se uma divisão na Esplanada dos Ministérios com uma ala vestida de vermelho (pró-Dilma) e outra vestida de verde e amarelo (anti-Dilma). “Havia esse movimento contra a Dilma, pedindo o impeachment, bradando contra a corrupção, mas surge um discurso perigosíssimo, fazendo menção à Guerra Fria, como se os governos petistas tivessem sido governos comunistas, o que é uma bobagem, é um erro conceitual”, avalia o acadêmico. O mesmo discurso se repetiu durante a prisão do ex-presidente Lula, em abril desse ano, e durante a paralisação dos caminhoneiros, em maio, quando alguns manifestantes pediram a intervenção militar.
Collor e Diretas Já
Tentativa semelhante de apropriação das cores verde e amarela ocorreu durante o impeachment do ex-presidente Fernando Collor (PTC), em agosto de 1992. No dia 13, o então chefe do Executivo, enrolado com um escândalo de corrupção que custaria o seu mandato, faz um pronunciamento na televisão, pedindo que os brasileiros saíssem às ruas em defesa do seu governo usando as cores da bandeira do Brasil. No domingo seguinte, dia 16, a população, liderada pelo movimento estudantil, foi às ruas vestindo preto, buscando se contrapor ao que Collor representava. Esse episódio ficou conhecimento como o “movimento dos caras-pintadas”.
A Copa do Mundo de 1982, segundo o professor Flávio de Campos, também entra para lista de episódios da nossa História onde os símbolos nacionais operaram a significação política da população. O futebol era largamente usado para criar adesões à ditadura militar e a conquista da Copa de 1970 serviu a esse fim. “Essa seleção de 1982, por outro lado, representava bem aqueles que queriam o restabelecimento da democracia no Brasil. Não é por acaso que, dois anos depois, o movimento pelas eleições “diretas já” utilizou a cor amarela como símbolo. Tivemos a ressignificação do hino e da bandeira nacional nas manifestações”, esclarece o professor.
Flávio acredita que é necessário manter o futebol e a seleção brasileira como patrimônios do Brasil, porque essas manifestações da cultura popular ocupam lugar privilegiado no imaginário do País. “O futebol é um ingrediente presente em todos os poros da sociedade brasileira, da cultura popular brasileira. Não podemos abrir mão desse papel transformador”, adverte.