De braços dados, dezenas de ditos religiosos fazem oração em frente à unidade de saúde antes de tentar invadi-la forçando portas de vidro à força. Gritam “assassino” e rogam pela vida, querendo exigir que uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio, termine de gestar um feto, mesmo que isso lhe custe a sua. As múltiplas violências registradas na tarde deste domingo (16/7), em frente a um hospital do Recife, não são novidade para o diretor médico e obstetra Olímpio Moraes Filho, “excomungado duplamente” pela Igreja Católica, uma delas por fazer o mesmo procedimento, com assustadora semelhança, mas numa menina de 9 anos de Alagoinha, no interior de Pernambuco, também estuprada, mas então grávida de gêmeos.
Nascida no Espírito Santo, a garota foi submetida à medicação e o feto, de óbito já confirmado, foi expelido com segurança, após uso de remédios naturais. Por procedimento de segurança, ela passará por uma curetagem, em busca de qualquer resíduo que possa trazer problemas reprodutivos para a paciente no futuro e a alta médica é esperada dentro das próximas 24h. De acordo com a equipe médica, apesar da dimensão dos protestos, garota e avó passaram praticamente sem perceber qualquer movimentação, por estarem em leito protegido, inclusive do barulho.
Um abaixo-assinado foi criado para punir os religiosos que perturbaram o ambiente hospitalar em protesto neste final de semana. Além de lidar com a pressão na unidade de saúde, a garota teve os direitos infantis novamente violados ao ter a identidade e hospital de atendimento revelados por uma extremista conhecida da ala governista, que se diz preocupada em preservar a vida de uma criança não nascida, expondo outra, na contramão do que explicitamente prega o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Acostumado com os xingamentos e maldições que lhe são lançados, dr. Olímpio, como é conhecido, há muito fez as pazes com seu conforto espiritual. Teme pela mãe, religiosa, sofre de preocupação com as danações propostas a plenos pulmões por fiéis que dizem seguir ensinamentos como “amai ao próximo como a si mesmo” e “quem dentre vós não tiver pecado, que atire a primeira pedra”. Apedrejado, até não foi, mas já foi alvo de bomba de tinta vermelha em protesto em turma de medicina, dentro de uma universidade federal, quando a pecha de “assassino” quase fazia parte de seu cotidiano.
A primeira vez que foi excomungado (e, para efeitos práticos, a “definitiva e não midiática”) foi por se envolver – e acabar sendo apontado como responsável – pela campanha de controle de natalidade da secretaria de saúde durante o carnaval de Pernambuco em 2006. Naquele ano, o governo passou a distribuir a chamada “pílula do dia seguinte” gratuitamente, para a população. A ousadia de impedir gravidezes indesejadas e evitar previamente abortos clandestinos lhe rendeu a punição máxima no rito cristão católico.
Não fosse o bastante, em 2008, no caso que mais evidenciou sua carreira, soube pela TV de uma menina de 9 anos levada ao Recife grávida do padrasto. Com pressão de todos os lados, unidades de saúde da capital pernambucana iam desistindo de realizar o procedimento, temendo o fim das doações de revoltados donos de bolsos fundos que “não contribuiriam para hospital aborteiro”. Por telefone, combinou um carro escondido para levar a garota ao Cisam, o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, ligado à Universidade de Pernambuco, o qual dirige até hoje. A unidade foi a segunda do país a ser autorizada a promover abortos legais e, desde 1996, recebe pacientes de vários estados brasileiros para realizar os procedimentos amparados na lei, que o prevê em caso de risco de morte da mãe, estupro ou anencefalia do feto.
Autorizou o procedimento na mesma noite. Por semanas, estampava o noticiário tendo o nome completo repudiado até pela Arquidiocese de Olinda e Recife. O arcebispo, então dom José Cardoso Sobrinho bradava “quando a lei dos homens é contrária à lei de Deus, esta lei não tem valor”, ao excomungar novamente aquele que a própria Igreja Católica já não considerava dos seus, dado o “vil” procedimento; pautado na ciência e no direito, em nome da integridade de uma menina de 1m32, 36 kg, à qual muitos queriam impor suportar a maternidade que não lhe cabia.
Hoje, aos 57 anos, ele continua tendo como um de seus mantras profissionais as palavras do ex-presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia Mahmoud Fathalla, que dizia: “as mulheres não morrem porque sua doença não pode ser tratada; elas estão morrendo porque as sociedades ainda não tomaram a decisão que suas vidas devam ser salvas” – frase que utilizou mais de uma vez em artigos e palestras. Foi ele quem acompanhou o protocolo e, mais uma vez, se viu vítima de repúdio religioso. Não é ele quem ministra o medicamento, mas sua caneta é a que dá o sinal verde – para muitos, esse é seu pecado.
Nesta segunda-feira (17/6), como no episódio registrado há 12 anos, voltou a usar os veículos de comunicação para criticar os profissionais de saúde que fazem cumprir a lei. “Decepciona-nos perceber que ainda existam profissionais de saúde que se prestam à prática do aborto. Este ato, mesmo com autorização judicial, não deve ser feito por uma pessoa de fé ou até incrédula consciente, por uma questão de respeito à Lei de Deus ou simplesmente por princípio ético, baseado no valor inviolável da vida”, declarou o atual arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido.
Criado por família católica, Olímpio Moraes hoje se diz agnóstico, mas nem críticas, nem excomunhão pesam em sua consciência, crédula apenas de seu dever. As semelhanças com o passar do tempo são diversas, mas, segundo o médico, a realidade e pressão, agora, são piores. “Antes eu tinha que lidar apenas com o arcebispo, agora, também tenho que lidar com os políticos; a bancada religiosa praticamente não existia e agora fazem uma pressão mais sentida. A realidade só tem piorado”, garante, por telefone, no Recife. Questionado sobre a possibilidade de mais uma excomunhão, numa espécie trindade às avessas, o obstetra dá de ombros, como quem pega emprestado dose extra de paciência: “minha preocupação é apenas a de fazer o certo”.