Jovens abusados por padres revelam seus dramas pela primeira vez…

VEJA / Por João Batista Jr., Adriana Dias Lopes e Edoardo Ghirotto

O pecado abjeto foi premeditado em detalhes. Após celebrar uma missa na zona rural de Araras, cidade a 180 quilômetros de São Paulo, o padre Pedro Leandro Ricardo convidou o coroinha Ednan Aparecido Vieira, então com 17 anos, para dormir na casa paroquial. A desculpa: estar a postos no dia seguinte para ajudá-lo na missa do domingo de manhã. Embora soubesse que não haveria mais ninguém na residência, o menino jamais desconfiaria que estava prestes a cair em uma arapuca. Chegando ao local, o clima começou a ficar estranho com as perguntas do anfitrião, que só queria saber da vida íntima do garoto. Tinha namorada? Qual era seu tipo físico preferido de menina?

Passado um tempo, o homem se retirou para tomar banho e a jovem visita ficou vendo TV na sala. Na sequência, começou o inferno. O padre, então com 32 anos, revelou suas verdadeiras intenções ao aparecer na sala vestido apenas com uma cueca samba-­canção. Seu estado de excitação marcava o tecido da peça. Começou a se masturbar e pediu que o adolescente fizesse sexo oral nele. Ao ouvir a recusa, avançou para cima do menino e começou a tocar suas partes íntimas, tentando forçar a relação. Em estado de choque, Ednan nada fez em um primeiro momento, até que conseguiu reunir coragem para se levantar e interromper o ataque. No dia seguinte, o padre celebrou a missa na Paróquia São Francisco de Assis como se nada tivesse acontecido. Mesmo traumatizado, o coroinha fez normalmente o trabalho na celebração, auxiliando o monstro que havia tentado molestá-lo na noite anterior. Uma semana depois, o padre dispensou os serviços do rapaz. O jovem era órfão de pai, e a mãe fazia parte do grupo de catequistas da paróquia. Devido a essa influência religiosa, Ednan servia a igreja havia dez anos com devoção. “Padre Leandro era como um pai para mim”, conta.

O relato do ex-coroinha faz parte de um dos maiores escândalos da história recente da Igreja Católica brasileira. Padre Leandro tem atualmente 50 anos. As barbaridades que cometeu nas sombras durante décadas só começaram a ficar conhecidas nos últimos meses. Ednan integra o grupo de seis pessoas — três homens, duas trans e uma mulher — que o denunciaram. Nesta reportagem de VEJA, pela primeira vez, elas revelam seus dramas. Até pouco tempo atrás, o clérigo era conhecido apenas como um líder carismático que cuidava de seu rebanho na periferia de Araras. Sua verdadeira face foi revelada em dezembro de 2018, quando a advogada Talitha Camargo da Fonseca e o produtor audiovisual José Eduardo Milani enviaram um dossiê de 68 páginas ao Vaticano para denunciá-lo, incluindo relatos das vítimas, que são representadas por Talitha. Todas prestaram depoimento há duas semanas na Polícia Civil de São Paulo.

MENSAGENS – O padre Pedro Leandro Ricardo: namorado, processos contra críticas no Facebook e conversas sobre nudes no celular (JC Nascimento/O Liberal/.)

Segundo elas, Leandro contava com a proteção de dom Vilson Dias de Oliveira, bispo emérito da Diocese de Limeira, jurisdição que representa dezesseis cidades do interior de São Paulo. Sem a intervenção das autoridades eclesiásticas de fora do país, que obedecem a uma diretriz do papa Francisco, tais crimes poderiam permanecer impunes. Agora, há uma esperança de que os malfeitos tenham consequências. Dois meses após o Vaticano receber o calhamaço com as denúncias, Leandro acabou afastado das funções de padre e de reitor da Basílica de Santo Antônio de Pádua e está impedido de celebrar missas até a conclusão da investigação. Mas continua recebendo cerca de 9 000 reais, entre salário e benefícios. O bispo Vilson, que o protegia, renunciou ao cargo quando o escândalo veio à tona. “Ele cansou de receber denúncias a respeito do padre Leandro, mas nunca fez nada”, diz a advogada Talitha.

Regra no Brasil e no exterior por muito tempo, a tática de acobertamento tem uma chance real de ser banida. Em fevereiro deste ano, o papa Francisco abriu um evento destinado a discutir o abuso sexual contra menores cometido por membros do clero. Para o encontro, denominado “A proteção de menores na Igreja”, o pontífice convocou 114 presidentes de conferências episcopais, como a CNBB, cardeais e embaixadores. Em uma atitude ainda mais ousada, Francisco estendeu o convite a vítimas de padres, na esperança de que seus depoimentos sensibilizem o clero para que ações de combate àquelas práticas alcancem, de modo muito contundente, as dioceses. Três meses depois, publicou um motu proprio (carta emitida diretamente pelo papa que modifica a legislação interna da Igreja), no qual torna obrigatório que padres e religiosos denunciem às autoridades eclesiásticas suspeitas de casos de abusos sexuais. Até então, os clérigos levavam adiante essas histórias de acordo com sua consciência pessoal.

motu proprio desburocratizou o mecanismo das denúncias. Estabeleceu que em cada diocese exista um “sistema de comunicação” destinado apenas a receber as queixas — as instituições têm até um ano para criá-­lo. Se a vítima quiser que a denúncia siga diretamente para a Congregação da Doutrina da Fé, será enviada, sem questionamento. Esse tipo de mecanismo já existia em alguns países, como Estados Unidos, mas o papa agora quer tornar a iniciativa obrigatória em todo o mundo. O motu proprio determinou ainda que os padres e religiosos são obrigados a denunciar qualquer suspeita. Os leigos que trabalham para a Igreja são também encorajados a relatar casos de abuso e assédio. As investigações precisam garantir a confidencialidade dos envolvidos e durar até noventa dias. A Igreja deve fornecer assistência médica, terapêutica e psicológica às vítimas. Uma das maiores críticas ao documento é não trazer nenhuma orientação para que os episódios sejam reportados às autoridades civis. Hoje, quando uma vítima procura a Igreja para relatar um caso de abuso, a entidade não tem a obrigação de relatá-lo à polícia para que ela o investigue. A Justiça comum, portanto, muitas vezes não toma conhecimento sobre atrocidades ocorridas nos meandros das paróquias.

A rigor, as regras da Igreja para um crime de pedofilia são universais e valem para casos que envolvam pessoas abusadas com idade inferior a 18 anos. A denúncia pode ser feita por qualquer pessoa — a própria vítima ou não. O caso deve ser relatado ao superior do clérigo acusado. Se o criminoso for o padre, por exemplo, deve-se falar com o bispo. A autoridade que recebeu a denúncia ouve o acusado. Se considerar a história verídica, ela seguirá para o Tribunal Eclesiástico.

No escândalo de Araras, o bispo Vilson Dias de Oliveira não deu andamento às denúncias que estavam sob sua jurisdição. Além do envolvimento de Leandro, há vítimas dos padres Carlos Alberto da Rocha e Felipe Negro. O dossiê enviado ao Vaticano não trata apenas de pedofilia. Há indícios fortes ali também de uma espécie de “mensalinho do abuso”. As vítimas afirmam que o bispo exigia propinas dos párocos de conduta condenável para deixá-los atuar sem ser investigados. A prática teria rendido dividendos visíveis. Vilson possui dez imóveis registrados em seu nome, todos em São Paulo. Metade deles na cidade de Guaíra e os outros em Itanhaém, no litoral sul paulista. Em uma avaliação conservadora, a soma do patrimônio supera a marca de 1,5 milhão de reais. É o verdadeiro milagre da multiplicação imobiliária. Procurado por VEJA, o bispo disse, por meio de seu advogado, que não cometeu condutas ilícitas. Acusado de abuso contra Paula Vallentin e de ter assediado Mariele da Silva Dibbern, Felipe Negro negou os crimes. “Essas denúncias não conferem”, limitou-se a dizer. O advogado Paulo Henrique de Moraes Sarmento falou em nome do padre Leandro: “Das seis pessoas, apenas duas foram ouvidas na delegacia competente para apurar o caso, e as outras quatro foram levadas até outra delegacia, onde foram ouvidas à revelia deste defensor, violando-se o direito de ampla defesa de meu cliente”. O defensor também refuta a história do “mensalinho do abuso”. “O padre Leandro nunca fez nenhum pagamento a dom Vilson”, afirma.

De acordo com as denúncias, o modus operandi dos três sacerdotes é muito similar. A maioria das vítimas nasceu em família pobre e desestruturada — e tinha a Igreja como esteio. Ou seja, os religiosos escolhiam a dedo as pessoas mais frágeis. No começo dos anos 2000, o bairro Jardim Ometto, na periferia da cidade, não tinha ruas asfaltadas nem quadras poliesportivas. Eram comuns assaltos, e pontos de venda de drogas funcionavam no local sem que os traficantes fossem importunados. “A paróquia representava a nossa única fonte de lazer, onde fazíamos amizade e passávamos o tempo”, conta S.M.C. Sua mãe trabalhava como faxineira de uma igreja. De tão humilde, dependia da ajuda da paróquia para fazer todas as refeições. Ele era órfão de pai e projetou no padre a figura paterna. Quando Carlos Alberto avançou o sinal, o adolescente não teve forças para reagir. “Ele me molestou, me tocou e me torturou psicologicamente durante um ano, todos os fins de semana. Dizia que, se eu contasse, seria expulso da igreja, me tornaria um bandido por ser pobre e não ter pai.”

A cartilha do padre Leandro também incluía terror psicológico, com a diferença de que os abusos começaram em incursões de Kombi para rezas na zona rural ou dentro da sacristia. Enquanto estava ao volante do carro, ele pedia às vítimas que se sentassem ao seu lado — e aproveitava para passar a mão nas pernas e no pênis dos garotos. Na sacristia, fazia questão de ver meninos tirando a roupa para usar a túnica de coroinha. Não raro, “ajudava” a vítima a vestir-se para poder tocar em seu corpo. Tempos depois, o padre adotou a tecnologia para assediar fiéis. Uma troca de mensagens por WhatsApp mostra Leandro falando sobre nudes com um rapaz.

SEM CONFISSÃO – O padre Felipe Negro: “Essas denúncias não conferem” (JB Anthero/Gazeta de Limeira/.)