Com as ruas vazias, pessoas em vulnerabilidade social sentem o peso do coronavírus

Mariana Moraes/Diário de Pernambuco

Para se prevenir do novo coronavírus, Covid-19, as primeiras recomendações são permanecer em casa, manter a higiene do corpo e do seu ambiente, além de constantemente lavar as mãos, e se possível passar álcool em gel, principalmente ao pegar em maçanetas e comidas. Onde Shirley Conceição* mora não tem maçanetas, porque não há portas ou paredes. Os alimentos, que já eram escassos, estão ficando ainda mais difíceis. A mulher, de 29 anos, divide uma calçada do Bairro do Recife com o seu marido e um amigo. Em situação de rua, eles ficam mais vulneráveis a infecção considerada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). 
 
“Eu até sei o que está acontecendo, vejo as pessoas passando de máscara. Ouvi dizer que era importante lavar as mãos com álcool e por isso eu e meu marido compramos um pouco no posto de gasolina aqui perto”, diz Shirley. “Os dias estão ficando muito difíceis, tudo está fechado e não conseguimos comida. Até as pessoas que antes passavam e nos davam jantar estão parando. Hoje atravessei a ponte e fui no Mercado de São José, tive sorte de encontrar alguém que me deu um mamão. Gostaria de estar em um abrigo.” 
 
José Gerivan Oliveira compartilha o local e aflição com Shirley. “Ela teve sorte, mas eu não. Estou com prato e garrafa vazios, porque até água está difícil de conseguir. Nos pedem pra lavar as mãos, mas não tem onde fazer isso, para arranjar um lugar para tomar banho tenho que andar quilômetros”, diz o senhor de 46 anos, que desde 2008 encontra-se em situação de vulnerabilidade. “Para falar a verdade nem o nome da doença eu sei dizer. Para mim, pior do que ela só o que passamos aqui na rua.” 


José tem dificuldade de encontrar alimentos e água (Foto: Tarciso Augusto / Diario de Pernambuco)

Sensibilizados com a situação deste recorte populacional, o movimento Frente Brasil Popular, em parceria com o Armazém do Campo, a ONG Bom Samaritano e a Pastoral do Povo de Rua, organiza a distribuição de marmitas na noite desta quarta-feira. “O Armazém fica localizado na Rua do Imperador, um espaço onde tem muitos moradores de rua. Antes do vírus, várias igrejas e grupos solidários faziam sopões para estas pessoas, mas com a chegada do corona muitos precisaram fechar. Sabemos que os moradores de rua têm acesso ao restaurante da Prefeitura na hora do almoço, mas e o café da manhã e o jantar? Começaremos a partir desta quarta-feira a distribuir alimentos. Serão, no primeiro dia, 50 marmitas, mas contamos com a colaboração de parceiros e da sociedade para que possamos aumentar este número”, diz o coordenador Paulo Mansan. “Queremos também arrecadar alimentos para que consigamos montar cestas básicas para os mais vulneráveis.” 

Além dos alimentos, o grupo também mobiliza costureiras do polo têxtil de Caruaru, para fabricar e distribuir máscaras de pano à população. “Nesse momento da história nós temos que nos unir em ações solidárias para superarmos este período tão difícil. É importante frisar também que prezaremos por todos os cuidados com higiene e saúde na hora de oferecer os alimentos àqueles mais necessitados.” Interessados em ajudar o projeto devem entrar em contato através do número (81) 9 9855-3121 ou depositar qualquer valor. Dados: Banco do Brasil, Agência: 0697-1 Recife, Conta Corrente: 58892-X, CNPJ: 09.423.270/0001-80. 

Questionada, a Prefeitura do Recife (PCR) respondeu que, embora ainda não tenham sido notificados casos confirmados ou suspeitos da Covid-19 na população em situação de rua da cidade, esses cidadãos permanecem sendo acompanhados pelo município e que um plano de ação está sendo elaborado pelo Comitê Municipal de Resposta Rápida ao novo Coronavírus. Dentre as ações iniciais previstas, até o momento, estão à destinação de 20 vagas para isolamento domiciliar no Abrigo Emergencial do Recife para a população em situação de rua. As vagas são destinadas àqueles usuários que forem encaminhados pelos serviços de saúde”, diz o comunicado.

De acordo com a PCR, no Restaurante Popular Josué de Castro, a comida passou a ser servida em quentinhas para evitar a aglomeração de pessoas no ambiente interno do equipamento. Dessa forma, o usuário garante a refeição na mesma qualidade servida dentro do restaurante, só que com o cuidado de não manter um grande número de pessoas em contato. E no Abrigo Noturno Irmã Dulce, a principal medida tomada foi a organização das camas de forma que haja um espaçamento maior entre os usuários durante à noite, para manter o distanciamento físico necessário.

“Como os dormitórios contam com ar condicionados, os usuários que tossirem ou espirrarem com mais frequência serão acolhidos em espaços mais arejados e com ventiladores. Caso sejam percebidos sintomas mais graves de um quadro viral, será realizado o devido encaminhamento para a unidade de saúde”, explica a nota. Ainda segundo a instituição, os equipamentos de assistência social contam com álcool em gel instalados nas paredes e com a presença de profissionais capacitados sobre a Covid-19.

As pessoas em situação de rua também serão contempladas com a campanha de vacinação da Influenza A (H1N1). A ação será realizada pelo Programa Consultório na Rua com apoio do Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), e acontecerá nos dois Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros Pop): o Centro Pop Glória, em Santo Amaro, e o Centro Pop Neuza Gomes, na Madalena, além do Abrigo Noturno Irmã Dulce, no bairro de São José. O atendimento também acontecerá de forma itinerante em todas as áreas da cidade.

A Prefeitura destaca, ainda, que a população vulnerável segue com assistência à saúde através dos programas Consultório de Rua e Consultório na Rua. Além dos atendimentos realizados pela Secretaria de Saúde, a população em situação de rua também é atendida pela Secretaria Executiva de Assistência Social, realizando escutas, identificando violação de direitos e necessidades das pessoas com o objetivo de promover o acesso à rede de serviços socioassistenciais. 

Flanelinhas  

A quarentena colocou as pessoas em casa e, por consequência, retirou os carros das ruas, o que dificulta o dia a dia dos flanelinhas. “Eu me agarro em Deus, não tenho condições de me cuidar, não tenho dinheiro para pagar álcool em gel”, comenta Edmilson Maciel Caldeiras, de 43 anos. “Há 20 anos trabalho no Bairro do Recife, mantenho minha casa e pago os remédios da minha mãe, que está com câncer, com a ajuda de custo que ganho e com o dinheiro que levanto guardando carros. Como as ruas estão vazias, os 40 reais que garantia por dia não tenho mais. Está muito difícil, mais na frente não sei como vai ser. Talvez precise vender algum móvel.” 


Com as ruas vazias, Jeová conta com a solidariedade de amigos (Foto: Tarciso Augusto / Diario de Pernambuco)

Jeová Bezerra, de 51 anos, também sustenta a casa, que divide com a mulher e duas filhas. “Elas estão em quarentena, sabemos a importância de se cuidar. Comprei álcool em gel e lavamos sempre as mãos com sabão, mas preciso sair para ganhar dinheiro”, diz o flanelinha. “Agora estou contando com a ajuda de amigos e com os poucos carros que param por aqui. Tem gente que nem vai passar muito tempo, tem gente que nem com o carro está, mas me dá alguma coisinha porque sabe que eu preciso.”  
 *Nome fictício