Ataques à democracia fazem economia se deteriorar, diz André Lara Resende

Folhapress
A instabilidade causada pela ofensiva do presidente Jair Bolsonaro contra as instituições democráticas é o principal fator responsável pela deterioração da situação econômica do país, afirma o economista André Lara Resende.
“[Ela] é resultado da crise política, da sensação de que o governo tem um projeto explicitamente antidemocrático e está disposto a sacrificar a economia e as instituições para colocá-lo em prática”, diz ele, um dos formuladores do Plano Real.
O economista acha que a pandemia do coronavírus mostrou que até países como o Brasil têm condições de se endividar para financiar seus gastos e não vê relação entre o atual desequilíbrio das contas públicas e as dificuldades que o governo encontra para segurar a inflação.
Crítico do receituário econômico convencional adotado no país nos últimos anos e defensor de políticas que ampliem investimentos públicos para estimular o crescimento, Lara Resende considera equivocada a decisão do Banco Central de elevar os juros para tentar conter o surto inflacionário.
“A verdadeira âncora da inflação é a legitimidade e a credibilidade institucional do governo”, diz o economista. “O que leva à perda de controle sobre as expectativas é a desorganização institucional e a perda de legitimidade do Estado.”
 A dívida pública brasileira já representa mais de 80% do PIB e pode superar 90% em dois anos, segundo o Banco Central. O aumento do endividamento na pandemia é motivo para desconforto?
ANDRÉ LARA RESENDE – Ficou claro que não existe um limite superior determinado para essa relação, a partir do qual a dívida se tornaria insustentável e a economia entraria em parafuso. [Os economistas americanos] Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, em “Desta Vez é Diferente”, sustentaram que as economias se desorganizam quando a dívida supera 90% do PIB. Foram desmentidos pela flagrante evidência desde a crise financeira de 2008, agora reforçada pelo pós-Covid.
O Brasil tem uma dívida pública interna, denominada em moeda nacional e carregada primordialmente por brasileiros. Não existe um limite superior intransponível para a relação dívida/PIB. Tudo depende de como são investidos os recursos.
Uma dívida pequena, cujos recursos foram mal investidos, desperdiçados com gastos improdutivos e demagógicos, pode se tornar insustentável. Já uma dívida expressiva, mesmo superior ao PIB, pode ser perfeitamente sustentável se os recursos forem bem aplicados e os investimentos levarem a uma taxa de crescimento superior ao custo da dívida.
Os prazos para rolagem de títulos do governo têm encurtado, e as taxas de juros futuros estão subindo no mercado. É sinal de desconfiança na capacidade do país de sustentar uma dívida tão alta?
ALR – Isso reflete expectativas de alta na taxa básica de juros fixada pelo Banco Central. Quando há expectativa de alta, para evitar prejuízo, sobretudo nos títulos de mais longo prazo, o mercado procura encurtar os prazos e eleva as taxas dos papéis longos.
A alta esperada da taxa básica pode tanto ser resultado de uma economia excessivamente aquecida, o que exige a atuação moderadora do BC, como pode refletir uma desconfiança mais profunda na economia e na política.
A verdadeira âncora da inflação é a legitimidade e a credibilidade institucional do governo. O que leva à perda de controle sobre as expectativas é a desorganização institucional e a perda de legitimidade do Estado. É o Estado patrimonialista, dirigido por políticos demagógicos e incompetentes, que solapa a confiança na moeda nacional.
 A conjuntura brasileira atual, com inflação em alta, dívida elevada e juros crescentes, mostra os riscos de uma política econômica com expansão fiscal, como a que o sr. defende?
ALR – Nunca defendi uma política fiscal expansionista, independentemente das circunstâncias e da qualidade dos gastos. Acredito, sim, que investimentos públicos de qualidade, que contribuam efetivamente para o aumento da produtividade e do crescimento, não devem ficar condicionados à existência de recursos fiscais.
Pode-se e deve-se, assim como faz toda empresa privada, usar o crédito para investir em projetos que tenham retorno superior ao custo da dívida. Não faz sentido restringir o investimento público de qualidade, em nome do equilíbrio fiscal a qualquer preço e em todas as circunstâncias.
Os gastos correntes do Estado, sobretudo os que custeiam a sua operação, devem ser integralmente cobertos por receitas fiscais. É uma forma de fazer a sociedade exigir que o Estado seja enxuto e eficiente em sua operação. Mas as transferências e os investimentos devem estar fora do orçamento fiscal.
Devem estar condicionados ao aumento do bem estar, da produtividade e do retorno do investimento, não à disponibilidade de receitas tributárias. Como todo gasto público, precisam ser avaliados e justificados, mas não segundo a lógica do equilíbrio das contas públicas.
 Os sinais de descontrole nas contas do governo tornam mais difícil mudar a política econômica?
ALR – A deterioração da conjuntura econômica, no Brasil de hoje, é resultado da crise política, da sensação de que o governo tem um projeto explicitamente antidemocrático e está disposto a sacrificar a economia e as instituições para colocá-lo em prática.
A alta recente da inflação não tem nada a ver com descontrole fiscal. Os preços das commodities subiram, os alimentos, o petróleo. O Banco Central deixou o real se desvalorizar mais do que outras moedas em relação ao dólar. E a pandemia desorganizou várias cadeias produtivas, provocando escassez de mercadorias.
Nesse cenário, a elevação das taxas de juros não segura os preços, mas inibe investimentos, aumenta o custo da dívida pública e leva a mais cortes no orçamento para equilibrar as contas públicas. O mundo inteiro parou de fazer isso. Não entendo por que contestar a ortodoxia na condução da política econômica ainda é visto como algo tão perigoso no Brasil.
É possível conciliar uma inflação que se aproxima de dois dígitos com uma política fiscal mais ativa no Brasil?
ALR – A verdadeira responsabilidade fiscal não é procurar equilibrar as contas públicas a qualquer custo, mas sim definir projetos de longo prazo, para realizar investimentos de alto retorno. Investimentos que precisam ser implementados de acordo com os limites da capacidade de oferta interna da economia, sem provocar desequilíbrio no balanço de pagamentos, desvalorizações cambiais e pressões inflacionárias.
Responsabilidade fiscal é ter metas e investir para adaptar a economia aos desafios deste século. É preciso investir em educação, pesquisa e tecnologia, para que o país não perca o bonde da nova revolução tecnológica. É preciso investir para adaptar a matriz energética, o transporte e as cidades para o desafio premente dos limites ecológicos do planeta. Esta é a verdadeira responsabilidade fiscal.
Medidas do governo para contornar o teto de gastos e ações do Congresso para aumentar sua influência sobre os recursos disponíveis para investimentos têm contribuído para aumentar desconfianças?
ALR – São exemplos de manobras, percebidas como ilegítimas, para viabilizar gastos demagógicos e improdutivos. O Estado, sob boa governança, quando gasta para investir de forma produtiva, ou para amenizar os danos de uma emergência como a da pandemia, pode se dar ao luxo de desrespeitar os limites do orçamento, sempre discricionários. Quando o faz de forma irresponsável e improdutiva, o resultado é a perda de confiança e de legitimidade.
Há maior incerteza sobre as condições financeiras para viabilizar programas de longo prazo em países como o Brasil?
ALR – Não necessariamente. Países que têm moedas reservas internacionais, como o dólar americano e o euro, têm mais espaço para usar o financiamento externo, mas todo país que tem sua moeda fiduciária pode investir, ainda que aumente transitoriamente sua dívida. Desde que não tenha déficits externos expressivos e que o retorno do investimento seja superior ao custo da dívida, não haverá problema para sua sustentabilidade.
 Nos EUA e na Europa, parece haver apoio crescente a propostas que aumentam a tributação das empresas e dos mais ricos. No Brasil, a tumultuada discussão sobre o Imposto de Renda aponta em outra direção, não?
ALR – A questão da desigualdade tem se agravado no mundo todo, mesmo nos países mais ricos. Naqueles em que a pobreza nunca foi erradicada, como no Brasil, o problema é ainda mais dramático e aumentou com a pandemia. A solução exige muito mais do que apenas tentar usar o Imposto de Renda como fator redistributivo. É necessária uma estratégia de desenvolvimento inclusivo.
O sistema tributário ideal é aquele que atrapalha o mínimo possível a economia. É simples, claro, direto. Nós fazemos o oposto. A carga de impostos é excessiva, assim como o custo para cumprir as obrigações tributárias, dada a complexidade do sistema.
Politicamente, tem grande apelo a ideia de usar os impostos para corrigir falhas na distribuição de renda na sociedade. Sou cético a respeito das chances de êxito. Entendo que a concentração de riqueza excessiva e a desigualdade são fatores detratores do bem-estar, mas expropriar os ricos não parece ser a melhor solução.
 Aumentar a dívida para financiar investimentos não criaria uma situação confortável, deixando em segundo plano a necessidade de cortar gastos públicos ineficientes e corrigir distorções no sistema tributário?
ALR – O problema não é a origem dos recursos, mas o que fazer com o dinheiro. Não basta alocar verbas na educação, na saúde, ou na infraestrutura. A solução dos nossos problemas nessas áreas depende do uso que for feito dos recursos disponíveis.
O que não significa dizer que tudo é permitido. Claro que não é. Restrições administrativas são importantes para o bom uso dos recursos públicos, para que os donos do poder não gastem irresponsavelmente nem se apropriem do dinheiro.
O histórico do Brasil, marcado por programas ineficientes e investimentos ruins, autorizaria uma aposta numa política fiscal mais expansiva?
ALR – O problema do Brasil não é a falta de recursos para financiar investimentos produtivos e relevantes, mas sim a péssima qualidade da governança do Estado. O problema é o governo e os políticos que tratam a coisa pública como o seu quintal, o velho patrimonialismo.
É fundamental rever e melhorar a governança pública, mas a visão de que o Estado é um mal, na melhor das hipóteses um peso morto a ser carregado pelo setor privado, agrava o problema. Afasta as pessoas bem intencionadas da vida pública e desvaloriza o funcionário público.
Sem gente boa, a governança se torna pior, num perigoso círculo vicioso. Não existe setor privado eficiente e dinâmico sem um Estado competente e boa governança pública.
RAIO-X
ANDRÉ LARA RESENDE, 70
Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio, é doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA. Foi diretor do Banco Central no governo José Sarney, assessor especial do presidente Fernando Henrique Cardoso e presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Trabalhou no mercado financeiro por mais de 30 anos. Publicou recentemente “Consenso e Contrassenso” (2020) e “Juros, Moeda e Ortodoxia” (2017), ambos pelo selo Portfolio Penguin.