O sincretismo religioso e a construção da identidade cultural…

Por Alex Kiefer da Silva*

Dentre os aspectos mais relevantes do atual cenário sociocultural da humanidade, certamente que a questão do pluralismo religioso é uma das mais importantes. Não obstante a existência das grandes religiões mundiais historicamente consolidadas, a verdade é que, a cada dia, novas denominações religiosas têm surgido, na forma de seitas e novos sistemas filosóficos e religiosos.

Esta grande multiplicidade de religiões, observada na atualidade, pode ser explicada por uma maior demanda de aproximação dos homens e mulheres do sagrado, na tentativa de encontrar respostas para os seus anseios emocionais mais profundos, mas também pela necessidade de autoafirmação do indivíduo dentro da sua crença religiosa e diante do seu grupo social. Ele objetiva servir-se da religião tanto para alcançar bem-estar e felicidade, quanto construir uma identidade individual que o posicione em meio ao mundo e às realidades que o cercam.

O fato de vivermos em meio à uma sociedade global eleva o peso do termo “identidade” levando-nos a pensar se realmente é possível construir uma identidade religiosa e cultural valendo-se apenas de elementos de uma única cultura. Enquanto crentes e sujeitos de nossa própria fé, somos questionados pelas nossas próprias dúvidas e anseios e levados a questionar o mundo que nos cerca. Este aspecto de questionamento leva os indivíduos a confrontar, muitas das vezes, aspectos das religiões nas quais estão inseridos e, por que não, encontrar possibilidades de respostas em elementos presentes em outros credos, sem abandonar o seu.

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A este processo de mistura de elementos de diferentes credos, coexistindo em uma mesma prática religiosa e gerando um hibridismo cultural, dá-se o nome de sincretismo. O termo, já bastante antigo, segundo Plutarco, foi criado na Grécia Antiga para simbolizar a união dos povos cretenses, muitas vezes divergentes, contra os inimigos externos. Depois os romanos aliaram o sincretismo geopolítico com a religião, praticando-o como estratégia de dominação, integrando em sua própria crença politeísta aspectos religiosos dos povos dominados, como fez com os deuses gregos e egípcios, que foram ressignificados para seus cultos com outros nomes. Foi só na Idade Média que este conceito de sincretismo geopolítico se tornou essencialmente religioso, quando a Igreja Católica conclamou alianças momentâneas entre diferentes grupos com interpretações divergentes da religião cristã em risco de heresia.

Alguns pensam o sincretismo como um resultado, produto híbrido de uma mistura de elementos culturais e religiosos; outros, contudo, o veem não como resultado, mas sim como processo dinâmico de reinterpretação destes mesmos elementos que geram o hibridismo. O fato é que o entendimento do sincretismo se torna realmente bastante complexo, se não existir um conhecimento prévio das religiões e elementos que o compõem.

Quando se fala da identidade de alguém, ou de um grupo social, com certeza os aspectos culturais e religiosos são elementos definidores. Não se pode, por exemplo, falar da cultura religiosa do Cristianismo sem evidenciar os elementos trazidos das religiões com as quais ele se relacionou ao longo da sua história, ou da configuração religiosa do povo brasileiro sem valorizar o sincretismo que mixou elementos das culturas europeia, indígena e africana. 

O Cristianismo é uma religião essencialmente sincrética. Diz-se isso pelo simples fato de que ele se apropriou de tradições, crenças e cultos disponíveis nas culturas da época (judaica, celta, nórdica, greco-romana e egípcia, dentre outras) na composição de seu culto e liturgia. Exemplos disso são as festas do calendário religioso católico – Natal e Páscoa – que, na verdade, foram sobrepostas às antigas festas pagãs do Solis Invictus (solstício de inverno na Roma Antiga) e de Ostara(ritual da primavera das culturas celtas e nórdicas). Também pode-se dizer que a representação salvífica de Jesus é recorrente nas mitologias de vários heróis anteriores a ele, como Hórus, Krishna, Dioniso e Mitra. As próprias representações de Maria, com o Menino Jesus ao colo, frequentes na arte sacra cristã, derivam das antigas representações da deusa egípcia Ísis com seu filho Hórus e da deusa babilônica Semíramis com seu filho Tanmuz.

No caso do Brasil, o sincretismo pode ser claramente observado não somente no aspecto do catolicismo, mas também de outras culturas religiosas, principalmente nas religiões de matriz africana e no Xamanismo. O sincretismo no Brasil apresenta-se de forma tão enraizada na cultura do povo brasileiro, que a Umbanda, religião nascida no país, é chamada de “tipicamente brasileira” e responde por se relacionar doutrinalmente não só com o Cristianismo, mas também com o Espiritismo Kardecista, o Candomblé africano e o Xamanismo indígena. Outro exemplo forte de religião sincrética, o Santo Daime, nascido na Floresta Amazônica, mescla a espiritualidade do Xamanismo indígena com crenças do Catolicismo e da Nova Era.

A identificação dos santos católicos com os orixás africanos foi a primeira instância do sincretismo religioso brasileiro. Esta identificação se processou tanto no nível do imaginário quanto do arquétipo. No caso do Brasil, o sincretismo surgiu da histórica imposição dos cultos católicos aos escravos africanos nas senzalas e alcançou uma dimensão mais plural e até política. Um exemplo disso é a associação da deusa africana Oxum com a Virgem Maria, na devoção a Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Os escravos negros identificaram a imagem da santa de cor negra, encontrada por três pescadores nas águas do rio Paraíba do Sul em 1717 com Oxum, que é a orixá regente das águas doces, do amor e da maternidade. Com a aceitação do culto a Senhora Aparecida e seu reconhecimento pela Igreja, que a declarou Padroeira do Brasil, a Umbanda de matriz africana sancionou o sincretismo com Oxum de tal modo que sua festa fosse associada à da santa católica, em 12 de outubro. Casos semelhantes podem ser verificados, também, no sincretismo de Jesus Cristo com Oxalá, de São Jorge com Ogum, de São Sebastião com Oxossi, de Santa Bárbara com Iansã, de São Jerônimo com Xangô e de São Cosme e São Damião com os orixás Ibejis, dentre outros.  

Outro importante aspecto do sincretismo é a de congregar numa única experiência religiosa, como aconteceu com a Umbanda, ritos, divindades e símbolos de credos diferentes, sem preconceito de cor, raça, sexo ou condição social. A presença espiritual de Caboclos (índios), Pretos Velhos, Erês, Ciganos, Exus e outras entidades nas religiões de matriz africana, fortalece este sincretismo, aproximando do seu culto representantes da população brasileira geralmente pobre, marginalizada e oprimida, que não encontraram lugar nos cultos religiosos oficiais do Cristianismo e do Kardecismo. O sincretismo é tão forte no Brasil que se processa também no âmbito do folclore e suas manifestações culturais, que se fundem com a própria história do país e da formação cultural de seu povo.

Pode-se dizer, portanto, que o sincretismo é importante na construção da identidade cultural e religiosa de um povo, que a cada dia se reinventa e se traduz na aproximação de elementos e valores bem diferenciados na sua natureza. Esta identidade ainda continua sendo construída dia após dia, sempre que as respostas às questões mais íntimas de cada indivíduo são encontradas em outras culturas. Em face do grande pluralismo religioso da atualidade, o sincretismo se apresenta como uma alternativa viável para solucionar isso.

*Alex Kiefer da Silva é mestre em Ciências da Religião pela PUC Minas, simbologista, ator e escritor.